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“Psicodélicos não alucinógenos”: precisa alterar a consciência para curar transtornos mentais?

A bióloga Anya Ermakova, do Instituto Chacruna, fala sobre os benefícios e os riscos dos psicodélicos que não causam os efeitos de expansão da mente

Carlos Minuano, para a Psicodelicamente

Foto: David Clode - Unsplash

Um novo tipo de substância divide as opiniões da comunidade psicodélica. São os “psicodélicos não alucinógenos”, compostos que poderão tratar transtornos como a depressão, mas que não alteram a consciência — a exemplo do composto semelhante ao LSD anunciado por pesquisadores chineses, em janeiro de 2022, na revista Science.

Para parte dos cientistas, pode ser uma alternativa mais barata e acessível, já que dispensaria os custos das longas sessões de treinamento e acompanhamento de psicoterapia, e atrairia pacientes e médicos mais conservadores. Outros pesquisadores, no entanto, defendem que as alterações na mente provocadas pelas experiências psicodélicas são parte essencial do processo terapêutico.

Para a bióloga Anya Ermakova, membro do Conselho de Administração do Instituto Chacruna, organização dedicada aos estudos sociais dos psicodélicos, com sede em São Francisco, nos EUA, é preciso estarmos abertos. “As oportunidades perdidas quando não estudamos os psicodélicos são muito mais significativas do que os riscos”, aponta. “O que espero é que com a medicalização dos psicodélicos não percamos os outros aspectos dessas substâncias tão multifacetadas.”

Em entrevista à Psicodelicamente, Ermakova pondera sobre os benefícios e os riscos de eliminarmos a parte subjetiva das experiências psicodélicas.

Qual é a sua opinião sobre os psicodélicos que não têm efeitos alucinógenos?

Esse é um debate muito interessante: os efeitos subjetivos e alteradores da mente causados pelos psicodélicos são necessários para sua eficácia terapêutica? Esses efeitos subjetivos não passam de “efeitos colaterais alucinógenos” ou são parte inseparável do tratamento?

Alguns cientistas — geralmente aqueles com uma mente mais voltada para a biomedicina —, como David Olsen e Bryan Roth, acreditam que desde que se consiga os efeitos desejados (como uma mudança na neuroplasticidade ou conectividade do cérebro que resulte em tratamentos eficazes de distúrbios mentais ou neurológicos), os efeitos subjetivos não são necessários. De fato, se houvesse um remédio que tivesse, digamos, um efeito antidepressivo tão rápido e duradouro quanto a psilocibina, isso revolucionaria a psiquiatria, muito mais do que o atual modelo de terapia assistida por psicodélicos.

Mas existe o outro lado, certo?

Existem vários outros cientistas que pensam na saúde mental de forma mais abrangente, através de um modelo biopsicossocial (que analisa a interconexão entre biologia, psicologia e fatores socioambientais), que discordam dessa possibilidade. Eles acreditam que os efeitos subjetivos e as avaliações subsequentes são a chave para liberar todo o potencial terapêutico dos psicodélicos.

Mesmo supondo que a neuroplasticidade induzida por psicodélicos seja um resultado dos efeitos terapêuticos, não devemos subestimar a importância dos insights, da sensação de admiração, da conexão, da dissolução do ego e das experiências místicas que acompanham a viagem psicodélica, assim como a integração dessas experiências por meio de terapia assistida. Seguindo Robin Carhart-Harris, se pensarmos na neuroplasticidade como algo semelhante ao recozimento na metalurgia, a experiência subjetiva e sua integração (reforçada pela psicoterapia) é o que molda a direção da mudança.

Os participantes de ensaios clínicos geralmente classificam a experiência psicodélica como uma das mais significativas de suas vidas. Ter uma experiência mística completa se correlaciona com melhores resultados em uma variedade de diagnósticos. Além disso, mudanças de perspectiva, insights, sentimento de conexão (com a natureza, consigo mesmo e com os outros), sentimento de admiração, tudo isso contribui para melhorias nos sintomas.

Acha que esse modelo não alucinógeno seria uma solução mais favorável às demandas do mercado farmacêutico?

Hipoteticamente falando, se a eficácia terapêutica dos psicodélicos não alucinógenos fosse igual a dos convencionais, isso seria uma solução muito mais favorável. Existem várias razões para isso: vai ser mais barato (e mais seguro) de entregar, vai ser mais aceitável pelos médicos e pacientes convencionais, vai ser mais acessível aos pacientes que, em vez de ir a clínicas especializadas, vão poder se auto-administrar em casa, não vai ter a necessidade de treinar terapeutas e vai facilitar o caminho da regulamentação. Se pegarmos o exemplo da depressão, vai ser um outro Prozac, só que mais seguro e eficaz.

A questão é se funciona…

A grande questão é: será que elas são tão eficazes quanto o modelo de terapia assistida por psicodélicos? Ou: será que funcionam sem suporte terapêutico?

 

Isso é uma coisa que vale a pena ser testada, mas eu sou cética. Pode ser testada diretamente, por exemplo, como um estudo de vários braços, comparando psicodélicos convencionais com e sem terapia e drogas ‘não psicodélicas’ com e sem terapia. Outra opção seria administrar o composto psicodélico em pessoas sob sedação pesada, que não vão se lembrar dos efeitos subjetivos, e observar se os efeitos terapêuticos aparecem.

Nos Estados Unidos, você percebe um discurso de que esses compostos não alucinógenos seriam “superiores” ou “preferíveis” aos psicodélicos?

Isso depende do círculo em que você está inserido. Diria que, provavelmente, a maior parte da comunidade psicodélica está do lado da importância dos efeitos subjetivos. Não quero generalizar, mas imagino que as pessoas que preferem psicodélicos “não psicodélicos” provavelmente têm experiência em desenvolvimento de medicamentos farmacêuticos tradicionais, negócios, autoridades regulatórias ou bioquímica, em vez de psicologia, prática clínica, antropologia… Fora da comunidade psicodélica, pessoas mais conservadoras ou geralmente cautelosas com os efeitos dos psicodélicos apoiariam essa inovação.

Um exemplo de debate neste tópico seriam estes dois artigos: “The subjective effects of psychedelics are necessary for their enduring therapeutic effects”, do David B. Yaden e Roland R. Griffiths; e “The subjective effects of psychedelics may not be necessary for their enduring therapeutic effects”, do David Olsen.

Estamos caminhando para um novo conflito de interesses que envolve a ciência e o mercado e que, por outro lado, desrespeita ou desvaloriza o uso tradicional dessas substâncias?

Tradicionalmente, a pesquisa biomédica e as empresas psicodélicas emergentes dão muito pouco valor ao uso tradicional dessas substâncias, ou ao uso religioso atual. Felizmente, na comunidade psicodélica, há resistência contra isso e existem muitas iniciativas de reparação. Tem, por exemplo, a Iniciativa de Reciprocidade Indígena do Instituto Chacruna, que pede que as empresas invistam em comunidades psicodélicas como retribuição. O Instituto Chacruna continua promovendo publicações e conversas que honram as raízes indígenas do movimento psicodélico, alimentando o debate sobre reciprocidade, autonomia, descolonização, mercantilização, conservação, apropriação cultural, perspectivas indígenas sobre a globalização dos medicamentos vegetais, inclusão dos indígenas no circuito psicodélico e ética na nova indústria psicodélica.

Quais são os riscos?

Os psicodélicos, como a maioria dos medicamentos, têm seus próprios benefícios e riscos potenciais. O papel da ciência e dos cientistas é compreender melhor ambos, a fim de evitar os riscos e maximizar os potenciais. Na minha opinião, as oportunidades perdidas quando não estudamos os psicodélicos são muito mais significativas do que os riscos. Mas é claro que existem alguns riscos inerentes aos psicodélicos, e eles nunca serão uma panacéia que trata todas as doenças ou se adapta a todas as pessoas. Há um excelente artigo de Matt Johnson sobre esses riscos, que gosto de citar. Ele descreve as considerações usuais de set e setting, contra-indicações psiquiátricas, interações medicamentosas, etc.

E quanto aos riscos específicos para o avanço das pesquisas?

O maior risco é quando o foco da pesquisa se torna muito estreito. Entendo que, para obter aprovações regulatórias no desenvolvimento de medicamentos, é preciso seguir um caminho bem definido, e é aí que todas as pesquisas financiadas por empresas estão dedicando seus esforços. Mas espero que também continuemos a ter estudos motivados por curiosidade e admiração, algo que não traz benefícios imediatos em termos de avanço de aprovações regulatórias, demonstração de eficácia terapêutica (ainda que precisemos disso, claro!) ou lucro. Espero que organizações sem fins lucrativos e até órgãos governamentais financiem a ciência básica, olhando para os mecanismos de ação, ou pesquisas ecológicas e de conservação da natureza tão necessárias em tempos de crise ambiental, pesquisas antropológicas e etnobotânicas, investigações históricas e filosóficas, etc. O que espero é que com a medicalização dos psicodélicos não percamos os outros aspectos dessas substâncias tão multifacetadas.

 

Essa reportagem foi publicada no site VivaBem do UOL e republicada na Psicodelicamente com autorização da agência de notícias Folhapress.

Carlos Minuano

Jornalista e escritor, há mais de duas décadas escreve sobre psicodélicos nos principais veículos jornalísticos do país, como nas revistas CartaCapital, Rolling Stone, jornal Metro. É colaborador do portal UOL desde 2012. Além de dirigir a Psicodelicamente, atualmente trabalha na pesquisa para um livro sobre psicodélicos, que será publicado pela editora Elefante. É autor de duas biografias, “Tons de Clô” (do estilista Clodovil Hernandes) em adaptação para uma série de streaming, e “Raul por trás das canções” (do músico Raul Seixas), ambas publicadas pelo grupo editorial Record.

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