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Chá psicodélico: ayahuasca pode ser criminalizada no Brasil?

Matéria do site Mídia Ninja sobre fundador do Santo Daime gera desinformação em torno do status legal da bebida no país

Carlos Minuano e Juarez Duarte Bomfim, para a Psicodelicamente

Foto: Paula Nogueira

Em novembro, no mês da consciência negra, o site Mídia Ninja publicou uma reportagem sobre a história de Raimundo Irineu Serra (1892-1971), mais conhecido como mestre Irineu, o fundador do Centro de Iluminação Cristã Luz Universal Alto Santo, sediado no Acre, que deu origem à doutrina do Santo Daime. O culto religioso utiliza a bebida psicoativa ayahuasca, também usada ritualísticamente por povos indígenas da Amazônia. Entretanto, o parágrafo final da matéria traz informações equivocadas sobre o status legal do chá psicodélico no Brasil.

Sabe-se que o site Mídia Ninja mantém uma linha editorial de respeito à diversidade cultural e defesa dos direitos humanos. Mas, a matéria “Mestre Irineu, conheça a história do filho de escravizados que criou uma religião de origem amazônica”, reproduz uma narrativa enviesada de preconceito e discriminação ao uso ritualístico e religioso da ayahuasca.

Embora contenha informações biográficas e antropológicas satisfatórias para uma publicação não especializada no assunto, a matéria, ao abordar a legalidade da ayahuasca, citando como fonte a PF (Polícia Federal), afirma que “o consumo do chá é legal apenas no âmbito religioso, em outras circunstâncias pode ser considerado crime, a depender do contexto.”

A informação está alinhada com a nefasta política de “guerra às drogas” que estado e governo brasileiro travam, incansavelmente, seguindo o modelo da matriz americana (EUA), e que recrudesceu a partir dos anos 1970.

É preocupante as desinformações veiculadas pelo site sobre o status legal da ayahuasca no Brasil. Em nenhuma hipótese a PF tem autoridade para definir o que é ou deixa de ser consumo de ayahuasca “no âmbito religioso.”

Esta é uma questão sociológica e antropológica, baseada na realidade social de construção de identidade de grupo, que pode ser autodeclarada e assim legitimar-se.

Sob a luz da compreensão da resolução do Conad (Conselho de Políticas sobre Drogas) de 25 de janeiro de 2010, que regulamenta o uso da bebida, o uso de ayahuasca não pode ser criminalizado. Está inclusive contemplado por salvaguardas previstas no art. 2°, da Lei 11.343, de 23/08/2006 (Lei de Drogas).

A reportagem encerra afirmando que “o Brasil é signatário de normas legais e convenções que consideram crime a exportação da ayahuasca”. Mas, não informa qual ‘norma’ ou ‘convenção’ nem muito menos quem assinou o tal documento, se foi a Presidência da República, o Ministério da Justiça, ou de Relações Exteriores.

E há uma contradição crassa na afirmativa. Criminalizar ou não a ayahuasca depende da legislação em vigor de cada país. No caso brasileiro, usar ou portar ayahuasca não é crime. O máximo que a Polícia Federal pode fazer é impedir a tentativa de exportação da bebida, ainda em território nacional.

E se a apreensão de ayahuasca se der em solo estrangeiro, cujo envio se originou no Brasil, se a Polícia Federal for convocada, o que ela pode fazer é auxiliar as autoridades policiais destes países, baseado na existência de possíveis acordos de colaboração. Mas não pode criminalizar e ameaçar de punição o remetente da ayahuasca por “tráfico internacional de drogas”.

Regulamentação da ayahuasca

O governo brasileiro regulamentou o uso da ayahuasca para fins ritualísticos e religiosos com a resolução do Conad em 2010.

Com base neste documento, pode se compreender que quando alguém se referir a ayahuasca, será errôneo falar em ‘droga’ ou ‘substância entorpecente’ sujeita à repressão da Polícia Federal, posto que se trata de bebida devidamente autorizada e regulamentada pelo estado brasileiro.

Em outras palavras, quem usa ou porta consigo ayahuasca, para fins religiosos ou ritualisticos e medicinais, no caso de indígenas, age no exercício regular do direito à liberdade de religião e culto, e seu comportamento é penalmente atípico” – isto é, não pode ser tipificado como comportamento criminoso.

O documento regulamentador do uso da ayahuasca teve por objetivo criar uma deontologia, isto é, um conjunto de procedimentos que deveriam ser cumpridos pelas instituições usuárias da bebida, estabelecidos por elas mesmas, com a colaboração de cientistas e especialistas.

Cabe ressaltar que a resolução que regulamenta o uso da bebida não tem caráter punitivo. Inclusive a definição do que seria (ou não) “uso religioso” poderia ser definido pelas próprias instituições usuárias, pois o conceito sociológico e antropológico do que pode ser considerado “religioso” é bastante amplo, mutável.

Repressão à ayahuasca

Apesar do status de legalidade da ayahuasca no Brasil, não é incomum autoridades policiais avocarem para si a atribuição de legislador e “criminalizarem” a bebida amazônica, em ações totalmente ilegais, que se caracterizam como abuso de autoridade.

A ciência no campo dos psicodélicos têm acumulado evidências sobre o potencial terapêutico desses compostos para diversas patologias. Ainda assim, essas substâncias são postas sob suspeita e perseguidas como inimigas do estado. O mesmo não ocorre com a bebida alcoólica, que é a que indiscutivelmente mais causa estragos e adoece a sociedade. A diferença de tratamento certamente é porque o alcool movimenta uma bilionária e poderosa indústria da economia global.

A repressão à ayahuasca e aos ayahuasqueiros, os igualando a narcotraficantes é infame e injusta, é o descumprimento da norma produzida pelo Conad é o desrespeito à diversidade e aos direitos humanos, garantidos pela Constituição Federal, que tem no respeito à dignidade humana e no combate ao preconceito a sua viga mestra.

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