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Polícia Civil do DF divulga informações controversas sobre cogumelos mágicos

Sites reproduziram notícia que ignora dados científicos sobre psicodélico estudado para tratamentos de depressão e ansiedade

Carlos Minuano, para a Psicodelicamente

Foto: Foto: Freepik

A Polícia Civil do Distrito Federal divulgou uma nota na última quarta (26) sobre uma operação chamada “Cogumelo Mágico”, mas com informações controversas sobre a substância psilocibina, presente nos fungos do gênero Psilocybe. Sites Metrópolis, G1 e jornal Cidade Alerta (TV Record) replicaram a notícia sobre a droga que, apesar de proibida no país, vem sendo estudada para tratamentos de depressão severa, ansiedade e dependência química.

A nota informa sobre a prisão, após uma investigação de cinco meses, de um homem de 29 anos, que teria montado um laboratório para produção e comercialização de cogumelos alucinógenos na internet. Mas ao descrever a substância apreendida, o texto não leva em consideração dezenas de estudos científicos que apontam evidências sobre o potencial terapêutico da psilocibina para a saúde mental. 

O comunicado da Polícia Civil do DF à imprensa afirma que “entre os cogumelos apreendidos estão aqueles que possuem o alcalóide psilocibina, substância altamente viciante e que causa graves danos à saúde física e mental”. De acordo com a nota, “as drogas de difusão ilícita eram apresentadas de forma profissional, embasadas em uma (falsa) base científica, para induzir pessoas ao consumo.”

Na nota, tal como nas matérias publicadas por sites de notícias e na TV, há informações preocupantes que não estão alinhadas aos conhecimentos científicos sobre os cogumelos com psilocibina, afirma o psicólogo Fernando Beserra, coordenador e cofundador da APB (Associação Psicodélica do Brasil). O pesquisador também integra o conselho editorial da Psicodelicamente.

Segundo o psicólogo, há atualmente um consenso científico de que a psilocibina não produz dependência e seus riscos são de outra ordem. “Mesmo no contexto de uso recreativo, a psilocibina tem sido avaliada como uma substância segura.”  

Beserra cita um survey (levantamento pela internet), de 2013, com usuários de drogas, coordenado pelo cientista Robin Lester Carhart-Harris, do Imperial College de Londres. O estudo, publicado no Journal of Psychoactive Drugs, coletou e analisou relatos de experiência pessoal com 11 drogas ilícitas diferentes. 

Os psicodélicos MDMA, LSD, psilocibina foram classificados como as três drogas menos prejudiciais. Segundo o artigo, quando questionados sobre benefícios, depoimentos apontaram potenciais aplicações terapêuticas dessas substâncias (por exemplo, como ferramentas para auxiliar a psicoterapia).

Riscos

O principal risco do uso de psilocibina e de outros psicodélicos é a ocorrência de crises, explica o coordenador da APB. “Podem ocorrer sintomas de ansiedade e desorganização psíquica”. Beserra esclarece que há formas de lidar com isso, com práticas de redução de danos no caso de uso recreativo, em festas, ou com psicoterapia no caso de abordagens  terapêuticas. 

Entretanto, segundo ele, mesmo essas experiências de crise podem ser avaliadas, em algumas ocasiões, com desfechos positivos para a saúde mental. Já há evidências sobre isso baseada em um estudo de 2016 dirigido por Thereza Carbonaro e Roland R Griffiths, publicado no Journal of Psychopharmacology.

“Em vários países têm sido questionada a proibição de cogumelos com psilocibina e outras substâncias psicodélicas, indicando a importância de regulamentar os usos terapêuticos no tratamento da depressão e também descriminalizar os usos sociais dessas substâncias”, argumenta Beserra.

Ele cita como exemplos, casos recentes em estados norte-americanos, no Canadá e na Austrália. “As políticas de guerra às drogas e de pedagogia do amedrontamento não produzem bons resultados enquanto buscamos orientar e educar a população sobre esse tema controverso”, salienta o pesquisador.

“É preciso salientar que a despeito de ser uma substância proscrita, proibida no Brasil, a psilocibina possui risco muito baixo ou inexistente de dependência química”, observa o médico Cesar Camara, diretor de pesquisa e inovação do Instituto Alma Viva, que tem um estudo com esse composto sendo desenvolvido em parceria com o Certbio (Laboratório de Avaliação e Desenvolvimento de Biomateriais do Nordeste), da UFCG (Universidade Federal de Campina Grande). Ele também é coordenador de uma pós-graduação lato sensu de psicoterapia assistida por psicodélicos. 

“Do ponto de vista terapêutico, está relacionada a um possível tratamento eficaz de quadros graves de depressão, ansiedade e de dependência em álcool, tabaco e outras drogas dentro de um processo terapêutico formal”, diz o médico. 

Camara ressalta que a psilocibina é considerada a substância de menor impacto negativo na segurança do usuário ou na segurança de terceiros quando comparada a diversas outras drogas. Ele reforça que isso se baseia em  evidências científicas apresentadas nos últimos 15 anos por publicações acadêmicas de instituições prestigiadas, como o Centro de Pesquisa Psicodélica e da Consciência da Universidade Johns Hopkins, nos EUA, e o Imperial College, em Londres.

Estudo comparou psilocibina e escitalopram. Reprodução/The New England Journal of Medicine

Psilocibina versus escitalopram

Dezenas de estudos avançam com resultados positivos e consistentes sobre o potencial terapêutico dos cogumelos psicodélicos para tratamento de diferentes transtornos mentais. Uma pesquisa coordenada pelo psicofarmacologista Robin Carhart-Harrispublicada em 2022 no The New England Journal of Medicine, fez uma comparação direta entre psilocibina e o antidepressivo escitalopram.

O estudo de fase 2, duplo-cego, randomizado e controlado (que divide participantes em grupos de forma aleatória, sem que saibam se estão tomando a substância pesquisada ou um placebo) foi realizado durante um período de seis semanas, com 59 pacientes com transtorno depressivo maior (depressão unipolar) moderado a grave, de longa data. De acordo com o artigo, resultados secundários favoreceram a psilocibina em relação ao escitalopram.

Outro artigo, também de 2022, publicado no Journal of Psychopharmacology, apresenta dados de uma pesquisa que acompanhou 24 pacientes com depressão por 12 meses, após duas sessões com psilocibina. Um ano depois das intervenções, 75% deles ainda tinham resposta do tratamento (50% de redução dos sintomas) e 58% estavam em remissão (sem sintomas).

Psilocibina não causa dependência

Outro especialista ouvido pela Psicodelicamente, o biomédico Renato Filev, pesquisador da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), reafirma que os cogumelos do gênero Psilocybe não causam dependência. “Estes compostos apresentam entre seus efeitos a capacidade de gerar tolerância com efeito continuado. 

Essa tolerância, segundo ele, se relaciona com a regulação da atividade do receptor serotonérgico 2A a partir do consumo continuado. “Cerca de três a quatro dias de uso são suficientes para a perda da percepção dos efeitos típicos desses compostos.” 

O biomédico explica que, embora o uso de cogumelos deste gênero não sejam inócuos, estudos dos efeitos e de possíveis danos provocados pelo consumo no Reino Unido, Europa e Austrália mostraram que os cogumelos são seguros quando comparados com outras substâncias psicotrópicas. 

Fungo do gênero Psilocybe, que contém a substância psilocibina. Foto: Freepik

Pode ou não pode?

Existem mais de 200 espécies de cogumelos que contém psilocibina. De longe, o mais popular no Brasil é o da espécie Psilocybe cubensis. O comércio do fungo, que brota no esterco bovino, circula livremente na internet, desidratado ou em cápsulas. 

Seja para fins medicinais, por seu possível potencial terapêutico, ou para uso recreativo devido aos efeitos psicodélicos, o consumo é cada vez maior. Mas, apesar das evidências cientificas sobre a droga, o fato é que a circulação e o comércio da substância ocorre de maneira ilegal. 

Embora não exista uma proibição expressa da venda do Psilocybe cubensis, em apreensões recentes perícias técnicas da polícia identificaram a psilocibina nos fungos. “Isso serviu para caracterizar o cogumelo seco como substratos dos quais possam ser extraídas substâncias proscritas”,  observa o advogado Emílio Figueiredo, da Rede Reforma e do Figueiredo, Nemer e Sanches Advocacia Insurgente, que atua no campo dos psicodélicos e da cannabis.

“As disposições regulatórias são nebulosas e isso significa uma grande insegurança jurídica para quem trabalha com os cogumelos que contém a psilocibina”, analisa o advogado. Ele também critica a divulgação da Polícia Civil do DF com informações equivocadas sobre o composto psicodélico. “Expõe uma perspectiva atrasada da Lei de Drogas, baseada em informações falsas e alarmistas, sem considerar a possibilidade do uso dos cogumelos como ferramenta terapêutica para promoção da saúde humana.”

O que diz a Anvisa?

Por meio de nota, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) informou que “o Psilocybe cubensis é uma espécie de cogumelo que apresenta em sua composição as substâncias psilocibina e psilocina, ambas proibidas no Brasil por serem classificadas na lista F2 (de substâncias psicotrópicas proscritas no Brasil) do anexo I da portaria 344 de 1998 do Ministério da Saúde.

De acordo com a agência, essa é a norma sanitária que classifica as substâncias entorpecentes, precursoras, psicotrópicas e outras, sujeitas a controle especial no Brasil. O texto conclui ainda que a lei 11.343/2006, que institui o Sisnad (Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas), também proíbe em todo o território nacional, as drogas, bem como o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas.

Fungos apreendidos na Operação Cogumelo Mágico. Foto: Polícia Civil/DF

O que diz a Polícia Civil do DF?

A reportagem da Psicodelicamente procurou a Polícia Civil do Distrito Federal para questionar a fonte das informações sobre a psilocibina contidas no comunicado à imprensa relacionado à Operação Cogumelo Mágico. Por meio da assessoria de comunicação, a Coordenação de Repressão às Drogas, responsável pela investigação, encaminhou a resposta que segue abaixo, na íntegra: 

Em atenção ao e-mail encaminhado à assessoria de comunicação da PCDF, no qual se questiona a fonte sobre os malefícios produzidos pela 

“Psilocibina”, informamos que conforme legislação brasileira que aprova o Regulamento Técnico sobre substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial – portaria 344/1998 – Anvisa/Ministério da Saúde, a substância em comento encontra-se lista no item 23 da lista F2 de substâncias psicotrópicas.

Neste sentido, a Psilocibina é substância proscrita no Brasil e, por ser uma psicotrópico é substância que causa dependência física ou psíquica, estando conforme já mencionado, descrita nas listas aprovadas pela Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas (Artigo 1º da Portaria n.º344/98).

Outrossim, o escritório para drogas e crimes das nações unidas (UNODC) traz como efeitos indesejáveis da Psilocibina a sonolência, falta de coordenação motora e até morte, se ingerida em grande quantidade.

Há, ainda, o decreto de n.º79.388/77, que promulga a convenção sobre substâncias psicotrópicas, o qual também traz em seu bojo a substância Psilocibina como substância psicotrópica.

A própria Organização  Mundial  de  Saúde  (OMS),  define drogas psicotrópicas como sendo aquelas que: “agem  no  sistema  nervoso  central, produzindo  alterações  de  comportamento,  humor  e  cognição,  possuindo  grande propriedade reforçadora sendo, portanto, passíveis de auto-administração” (Uso não sancionado pela medicina). Este tipo de droga leva a dependência.

Carlos Minuano

Jornalista e escritor, há mais de duas décadas escreve sobre psicodélicos nos principais veículos jornalísticos do país, como nas revistas CartaCapital, Rolling Stone, jornal Metro. É colaborador do portal UOL desde 2012. Além de dirigir a Psicodelicamente, atualmente trabalha na pesquisa para um livro sobre psicodélicos, que será publicado pela editora Elefante. É autor de duas biografias, “Tons de Clô” (do estilista Clodovil Hernandes) em adaptação para uma série de streaming, e “Raul por trás das canções” (do músico Raul Seixas), ambas publicadas pelo grupo editorial Record.

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