Revista digital de jornalismo psicodélico

Search

Plantas professoras: conhecimento e cura no mundo indígena

Antropólogo Jeremy Narby relata novo mergulho nos domínios do xamanismo amazônico em “Plantas Mestras - Tabaco e Ayahuasca”

Carlos Minuano, para a Psicodelicamente

Foto: Ilustração/Peconquena

Uma viagem fascinante pelo mundo do conhecimento indígena sobre plantas medicinais de uso xamânico. É o que reserva aos leitores o  instigante “Plantas Mestras – Tabaco e Ayahuasca” (editora Dantes), de Jeremy Narby, antropólogo canadense radicado na Suíça. 

Narby é conhecido pelo seu trabalho inovador em antropologia, que busca tornar mais compreensíveis temas como ciência e saberes indígenas, como fez no anterior “A Serpente Cósmica” (lançado no Brasil em 2018, também pela editora Dantes).

Em seu novo livro, ele mais uma vez mergulha nos domínios do xamanismo amazônico, dos curandeiros peruanos e de plantas “professoras” capazes de expandir a consciência, curar e ensinar. 

O autor oferece uma perspectiva única sobre a relação humana com estes dois poderosos aliados botânicos: o mapacho (tabaco xamânico) e a bebida psicoativa ayahuasca, usada há milhares de anos por dezenas de povos indígenas na Amazônia.

O primeiro contato com o tabaco ocorreu em 1985 quando Narby vivia em uma comunidade Ashaninka na Amazônia peruana. “Na opinião deles, é a principal planta mestra”, escreve o antropólogo na introdução do livro, lançado no Brasil em 2022. “Quando os Ashaninka se deparavam com algum problema ou doença, consultavam o seripiari, que significa “tabaco-xamã” na língua deles.” 

Boa parte da obra é um diálogo com o coautor Rafael Chanchari Pizuri, um ancião do povo Shawi, que trabalha na formação de professores indígenas, perto de Iquitos, no coração da selva amazônica peruana. A  região é conhecida como a capital mundial da ayahuasca por causa do intenso turismo xamânico em torno da bebida. 

Pizuri também atua como médico, como são chamados os curandeiros que trabalham com a medicina indígena, e o tabaco tem um papel importante nas práticas. 

O antropólogo conta ter se surpreendido com o que descobriu sobre a planta. “Encontrei concordâncias consideráveis entre os conhecimentos indígenas e a ciência contemporânea”, afirma Narby.

Mas, o antropólogo reconhece que a perspectiva indígena compreende um universo invisível ainda distante da ciência ocidental, como por exemplo a crença de que as “plantas mestras”, ou “de poder”, como a ayahuasca e o tabaco mapacho, possuem espíritos.

Desenhos no livro retratam ‘espiritos das plantas mestras’. Ilustração: Peconquena

No coração das tradições ancestrais

A exploração de Narby começa com uma visão geral da importância histórica e cultural do tabaco e da ayahuasca dentro das tradições indígenas. 

Aliás, é o coautor indígena, Rafael Chanchari quem explica que, entre outras atribuições, o tabaco de modo geral serve para transferir poder. “Mas para que os ensinamentos funcionem, isso requer ícaros (cantos de cura).”

O indígena também pondera sobre os riscos que o uso da planta representa. “Em pequenas doses, a fumaça do tabaco é medicinal, mas em abundância, ele destrói as células e deteriora o organismo.”

Chanchari também fala sobre a relação entre as duas plantas, que estão no título do livro. “Quando você toma ayahuasca, você precisa do mapacho para completar a medicina.”  

Resultado de extensa pesquisa de campo e entrevistas com xamãs de várias comunidades indígenas da região amazônica, a obra apresenta aos leitores uma compreensão autêntica e matizada dos papéis destas plantas nas práticas espirituais e de cura dessa região. 

Ao apresentar relatos em primeira mão, Narby transporta os leitores para o coração destas tradições ancestrais, capturando a essência da sabedoria que estas plantas detêm.

Capa do livro “Plantas Mestras”/Reprodução

Perspectivas indígenas

A força do livro de Narby reside na sua habilidade de unir pesquisa científica, experiências pessoais e perspectivas indígenas para lançar luz sobre os profundos ensinamentos que estas plantas oferecem.

“As plantas mestras são aquelas que transmitem conhecimento às pessoas que as consomem”, esclarece Narby. Ele cita no livro uma pesquisa realizada em 2011 que identificou 55 espécies vegetais consideradas “professoras” e utilizadas em iniciações xamânicas na Amazônia peruana.

Narby habilmente supera a lacuna entre o pensamento científico ocidental e os sistemas de conhecimento indígenas, desafiando os leitores a reconsiderar as suas noções preconcebidas sobre a natureza da realidade e da consciência. 

Ao questionar a abordagem reducionista frequentemente adotada pela ciência convencional, Narby nos convida a abraçar uma visão mais holística e interconectada do mundo.

Ao longo do livro, Narby compartilha os seus próprios encontros com a ayahuasca e o tabaco, oferecendo reflexões pessoais sobre o poder transformador dessas plantas. Ele não evita discutir os desafios e riscos associados ao trabalho com estas substâncias, enfatizando a importância de um uso responsável e respeitoso. 

Os autores advertem, por exemplo, sobre o consumo do cigarro industrializado, que segundo eles, oferece uma versão insípida de uma poderosa planta mestra, mas carregada de produtos químicos. “Os cigarros são uma paródia do tabaco, algo a se evitar a todo custo.”     

A honestidade de Narby ao partilhar a sua própria jornada torna o livro  mais próximo da realidade, estreitando a lacuna entre o mágico e o cotidiano. “Plantas Mestras – Tabaco e Ayahuasca” não apenas serve como uma exploração da sabedoria indígena sobre plantas medicinais, mas também como um chamado à ação. 

A mensagem essencial que transborda na obra de Narby aponta para a necessidade urgente do reconhecimento do valor e da relevância dos sistemas de conhecimento tradicionais indígenas e da proteção da floresta amazônica, onde as “plantas professoras” ainda resistem, apesar de toda a destruição que avança sobre a selva e as terras indígenas.  

Carlos Minuano

Jornalista e escritor, há mais de duas décadas escreve sobre psicodélicos nos principais veículos jornalísticos do país, como nas revistas CartaCapital, Rolling Stone, jornal Metro. É colaborador do portal UOL desde 2012. Além de dirigir a Psicodelicamente, atualmente trabalha na pesquisa para um livro sobre psicodélicos, que será publicado pela editora Elefante. É autor de duas biografias, “Tons de Clô” (do estilista Clodovil Hernandes) em adaptação para uma série de streaming, e “Raul por trás das canções” (do músico Raul Seixas), ambas publicadas pelo grupo editorial Record.

Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Relacionados

apoio

parceiros

A revista Psicodelicamente é uma publicação da Tucunacá Edições e Produções LTDA.