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Peia e bad trip são mais do que castigo e viagem ruim

Psiconautas dizem que são vivências distintas e com consequências emocionais e psicológicas diferentes. E especialistas, o que dizem?

Paula Nogueira, para a Psicodelicamente

Foto: Freepik

Se você já alterou seu estado de consciência usando alguma substância psicodélica como LSD, cogumelos mágicos, ayahuasca, muito provavelmente, no meio de alguma viagem, já teve que encarar uma ‘peia’ ou ‘bad trip’. No mínimo, ouviu falar. 

Os contextos de uso de um psicodélico podem variar, para fins xamânico, religioso, terapêutico, ou até recreativo. Isso quer dizer que as motivações do uso e cenários podem ser distintos, mas será que na hora do aperto, tem alguma diferença? 

Em primeiro, vale dizer que peias ou bad trips podem fazer parte de qualquer viagem. E também que independente de qual psicodelico você tenha usado e do termo que se utilize na sua tribo, entender essa etapa do processo pode ajudá-lo a fazer uma aterrissagem mais tranquila e segura.   

Mas, afinal, peias e bad trips são a mesma coisa? Os termos são frequentemente mencionados por psiconautas (como são chamados os usuários de psicodélicos) como vivências distintas e com consequências emocionais e psicológicas diferentes. E especialistas, o que dizem?

 No uso religioso da ayahuasca, por exemplo, muitos entendem a peia como um castigo. O termo serve para descrever uma experiência espiritual, extremamente intensa, profunda, mas corretora, ainda que turbulenta. Já a bad trip não costuma ter contornos místicos, sua fama é mais de uma viagem ruim, perturbadora e desorientadora.

Mas, segundo o psiquiatra e psicoterapeuta, Wilson Gonzaga são basicamente a mesma coisa, “Peia é uma bad trip, uma viagem esquisita, é quando a pessoa está vendo alguma coisa que fez de errado, está sofrendo com aquilo”, diz o médico que dirigiu por mais de duas décadas rituais com ayahuasca, bebida amazônica psicodélica usado por indígenas e religiões como Santo Daime e UDV (União do Vegetal). 

Gonzaga aponta que o motivo também pode ser uma interação com outras substâncias, como álcool, alguma coisa que comeu ou puramente física, mas na grande maioria das vezes tem um componente emocional. 

“É muito importante e didático que se entenda o processo que é o que se espera com uma planta professora, uma bebida professora, então ela está bem atrelada ao reconhecimento de um erro e o plano é não mais repeti-lo”, orienta o médico. 

Da mesma forma, Fernando Beserra, psicólogo e cofundador da APB (Associação Psicodélica do Brasil ) concorda que bad trip e peia são o mesmo fenômeno. “São oportunidades de aprendizado sobre si.”

Construções psíquicas

Em 2004, a peia virou até tese de um mestrado na PUC de São Paulo (Pontifícia Universidade Católica). O estudo “Marachimbé veio para apurar” analisa os significados do castigo simbólico, ou da tal peia, no culto do Santo Daime.

“Peia é comumente entendida como uma “surra” aplicada pelo próprio daime, que na concepção nativa, é considerado um “ser divino” com vontade própria”, escreveu o autor da pesquisa, Leandro Okamoto da Silva. Mas não é só o castigo que reflete a peia, ela é interpretada também como cura de uma doença, aponta a tese. 

“Uma boa parte das peias e das bad trips são construções psíquicas em cima da experiência”, explica Wilson Gonzaga, psiquiatra e psicoterapeuta. Sentimentos de afeto, medo ou alguma emoção é ampliado pelo estado alterado de consciência e pode parecer uma coisa monstruosa, disse o médico.

“O termo peia é utilizado pela comunidade ayahuasqueira, por entender que a experiência desafiadora pode trazer contribuições para o desenvolvimento psicológico ou espiritual da pessoa”, observa Fernando Beserra, da APB. 

Como lidar com uma bad?

Embora cercadas por mitos e estereótipos, em alguns casos, uma experiência psicodélica pode se transformar em sentimentos de medo, ansiedade, sensação de perda da noção de realidade, tristeza profunda, sintomas fisiológicos ou alterações cognitivas desconfortáveis.

“Não há nenhum método comprovado que garanta que alguém não terá uma crise”. Os psicodélicos promovem eventos desafiadores, isso é parte da experiência, comenta o psicólogo Fernando Beserra.

Ele destaca que evitar a mistura de substâncias, se preparar mentalmente, ter cuidado com o ambiente físico e escolher conscientemente a substância e a dosagem são fundamentais para uma experiência segura. 

Além disso, elementos que se referem ao set, setting e matrix também são importantes para criar um ambiente protegido, complementa Sandro Rodrigues, psicólogo e cofundador da APB, que também atua no atendimento do programa Trip (Terapeutas em Rede pela Integração Psicodélica) de atendimento clínico e formação.

“O set diz respeito ao estado corporal e mental do sujeito na hora em que ingere a substância, suas intenções, sua experiência anterior com psicodélicos, sua alimentação, seu sono.” 

Segundo Rodrigues, “o setting tem a ver ao contexto em que a experiência ocorre, fatores do ambiente como a música presente”. A matrix são as questões relacionadas com a vida, os laços familiares e comunitários, esclarece o psicólogo. 

“Todos esses fatores vão influenciar na experiência, tanto no que diz respeito à qualidade geral da experiência quanto aos próprios conteúdos”, finaliza Rodrigues. 

(Edição de Carlos Minuano)

Paula Nogueira

Jornalista, com formação técnica em rádio, pós-graduanda em Gestão da Comunicação Digital e Mídias Sociais. É colaboradora do UOL e da revista Psicodelicamente e atualmente também trabalha na pesquisa da biografia Tião Carreiro – Vida e Viola.

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