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Os psicodélicos e a cura do preconceito contra a população LGBTQIA+

Com um passado de “cura gay”, o campo dos psicodélicos vem encontrando novas formas de acolher pessoas gays, lésbicas e transexuais Sofrer uma agressão física dentro de uma sessão de ayahuasca parece algo improvável. Mas aconteceu com o cartunista Luiz Comzet em uma cerimônia do Santo Daime, grupo religioso que utiliza a bebida psicodélico em seus rituais. A violência foi motivada por preconceito. O agressor ficou surpreso ao descobrir que o rapaz estava acompanhado de seu namorado. “Durante um trabalho, ele começou a me xingar, dizendo coisas como ‘o cara dá a bunda e vem na igreja tomar daime, tem que tomar vergonha na cara’”, lembra o cartunista. “Ele me deu um soco, enquanto eu estava com os músicos, tocando flauta. Caí no chão, no escuro, durante a concentração. Foi vergonhoso.”

Por Nathan Fernandes, especial para a Psicodelicamente, de Córdoba (Argentina)

Foto: SharonMcCutcheon - Pixabay

Depois de ser agredido em uma cerimônia de ayahuasca, em 2006, durante dois anos, Comzet precisou fazer acompanhamento psiquiátrico para lidar com o trauma causado pela violência que sofreu. “Toda vez que eu tomava daime e ouvia um hino que me emocionava, eu começava a gritar”, recorda. Anos depois, em 2012, veio a ideia de criar a revista digital Madrinha Superci, para, segundo ele, através do deboche, convidar a comunidade ayahuasqueira a refletir sobre questões de gênero e outros temas necessários para aproximar o que se canta nos hinários do que se vive fora das cerimônias.

“A imagem de modernidade, de doutrina nova era, que os grupos brasileiros de uso enteógeno da ayahuasca querem passar é falsa, é uma imagem que não existe. Mesmo antes, quando se falava pouco no assunto, havia situações que eram abafadas, sejam relacionadas ao machismo, misoginia ou a homoafetividade”, detalha Comzet.

Desde 2018, com a eleição de Jair Bolsonaro, o acirramento da polarização política parece ter transbordado também para o campo dos psicodélicos, com lideranças ayahuasqueiras defendendo abertamente posturas homofóbicas. Como observou o jornalista Carlos Minuano, no UOL, essa “psicodelia de direita” mostra que, para muitas pessoas, os efeitos benéficos dessas substâncias esbarram no moralismo rasteiro.

A discussão sobre o tema é importante, porque assegura acessibilidade e acolhimento àqueles que buscam experiências transformadoras com psicodélicos, avalia o pesquisador de gênero no Santo Daime, o sociólogo Pietro Benedito, que integra os grupos Icaro/Unicamp e Healing Encounters/CNRS. Para ele, refletir sobre essas questões é uma  urgência.

“Também devemos trazer para o centro da reflexão a luta anti-racista, que é importantíssima para se pensar acessibilidade e psicoativos, já que os últimos estão relacionados à guerra contra as drogas, o classismo e a sexualidade”, explica. “As análises interseccionais, capazes de observar os entrelaçamentos das opressões, são importantes para o campo dos psicodélicos porque podem mostrar, por exemplo, que o sofrimento emocional de uma pessoa a ser atendida em uma clínica psicodélica está além do seu cérebro, e que os psicodélicos podem ajudar, mas não são uma pílula mágica que livrará o paciente ou a paciente para sempre daquele sofrimento.”

Esse debate é especialmente necessário em um momento no qual o mundo vive uma nova onda de renascimento de pesquisas com substâncias psicodélicas, fazendo com que o uso terapêutico ganhe evidência, para além das cerimônias. A terapia assistida com MDMA, por exemplo, deve ter seu uso regulamentado nos Estados Unidos em 2023. Nesse cenário, de acordo com Benedito, a pergunta central é: “A ciência psicodélica vai querer se manter ao nível cerebral, deixando de lado debates de gênero, sexualidade, raça e classe, entendendo-as como questões subjetivas demais ou difíceis demais para serem tratadas, ou vai levar essas questões com seriedade?”.

 

Em busca da cura 

Casos como o de Luiz Comzet mostram que a população LGBTQIA+, assim como mulheres e pessoas não-brancas, possuem especificidades que devem ser levadas em conta no contexto das pesquisas e do uso ritualístico de psicodélicos, sendo necessárias medidas que foquem nesses grupos. A ideia, ao contrário do que sugerem alguns críticos, não é separar ou criar uma “categoria especial” para essas populações, mas mostrar que suas singularidades são consideradas.

Em 2021, um estudo do Instituto Nacional de Saúde Mental (NIMH), dos Estados Unidos, coordenado pelo epidemiologista Rajeev Ramchand, confirmou conclusões prévias de que, quando comparados aos heterossexuais, o risco de suicídio entre lésbicas, gays e bissexuais é de três a seis vezes maior, em todas as faixas etárias e categorias de raça/etnia.

Para a psicóloga Clancy Cavnar, co-fundadora do Instituto Chacruna, organização dedicada aos estudos sociais dos psicodélicos, com sede em São Francisco, na Califórnia, existem diferenças na natureza do trauma, dos abusos ou das rejeições experimentadas por esses grupos que exigem abordagens e ênfases diferentes. Mas essas questões são frequentemente ignoradas no meio médico.

De acordo com Cavnar, no passado, as pesquisas se concentravam amplamente na saúde dos homens heterossexuais com o raciocínio de que as mulheres eram muito variáveis, propensas a ter ciclos menstruais ou partos que distorceriam os resultados, sendo deixadas de lado. “As pessoas queer também são negligenciadas porque são uma minoria que foi difamada e seu bem-estar não é priorizado”, pontua ela, à Psicodelicamente. “No mundo da medicina psicodélica, os esforços para tornar os tratamentos mais eficazes precisam incluir uma compreensão da cultura gay, a maneira como as experiências de estar ‘no armário’ e a vergonha e a rejeição influenciam os sentimentos de segurança.”

Em um estudo pioneiro, publicado em 2014, no Journal of Psychoactive Drugs, Cavnar analisou como cerimônias de ayahuasca afetam as experiências de pessoas LGBTGQIA+. No trabalho, ela jogou luz sobre um passado sombrio das pesquisas com psicodélicos, lembrando que, nos anos 1960, substâncias como LSD e mescalina já foram usadas para tentar “curar” a orientação sexual de homossexuais. “O uso de psicodélicos para coagir uma mudança no que agora é reconhecido como uma tendência inata só resultou em mais danos, fazendo ainda com que o paciente se sinta sem esperança, pois o tratamento, agora sabemos, não pode funcionar. Medicamentos administrados por médicos devem ser usados ​​para tratar doenças, e a homossexualidade não é uma doença.”

O cartunista Luiz Comzet lembra que, mesmo nos dias de hoje, não é incomum encontrar pessoas que se aproveitam da abertura causada pelos psicodélicos para propor uma “conversão”. “No Santo Daime, por exemplo, existe essa ideia de que nós estamos aqui para corrigir os nossos defeitos. E, como as igrejas são independentes, você pode encontrar tanto lugares como o Céu de Todos os Santos, no Piauí, onde toda a diretoria é LGBTQIA+, quanto lugares que fazem trabalhos para as pessoas se livrarem desse ‘defeito’. Vai depender da cabeça da liderança.”

Como aponta Cavnar, pessoas LGBTQIA+ que sentem vergonha de si mesmas são um dos efeitos colaterais de uma sociedade na qual a discriminação contra essa população está profundamente enraizada. “Aprender a se amar é a maior conquista para quem tem vergonha de si”, acredita a psicóloga, lembrando que essa é uma das dádivas que podem ser proporcionadas por substâncias como a ayahuasca. Nesse sentido, a única cura possível relacionada às questões LGBTQIA+ só pode ser a cura do preconceito.

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