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“Não se pode tirar do ser humano o direito de expandir a consciência”, diz Léo Artese

Léo Artese, 65, é um estudioso do que ele chama de xamanismo universal. Um híbrido de práticas tradicionais e novos formatos que se consolidaram nos centros urbanos. Desde 1992, se aprofunda nessas práticas, as quais, através de seus trabalhos, se expandem para países como Espanha, Portugal, Eslovênia e Estados Unidos. Além disso, coordena o Centro de Estudos de Xamanismo Vôo da Águia, estruturado a partir de influências recebidas do conhecimento que adquiriu em vários lugares, com indígenas brasileiros, na Amazônia peruana (com a etnia Shipibo-Conibo) e de nativos norte-americanos. Há 30 anos, abriu as portas da sua primeira igreja do Santo Daime (grupo religioso que utiliza a bebida amazônica ayahuasca em seus rituais). Desde 1998, dirige os trabalhos do Céu da Lua Cheia, em Itapecerica da Serra, uma das mais antigas de São Paulo. Apesar do olhar espiritualizado, o dirigente vê de forma positiva o renascimento das pesquisas com psicodélicos, como o DMT, LSD, MDMA e a psilocibina, para uso terapêutico. Em entrevista à Psicodelicamente, Léo Artese revela como foi sua primeira experiência com a ayahuasca, conta como a pandemia impactou no seu trabalho e fala das suas percepções sobre a ciência psicodélica. “Existem pessoas que jamais procurarão DMT em contexto espiritual, acho bom que você possa buscar o sagrado através das plantas em uma cerimônia, ou através do acompanhamento de um terapeuta.”

Paula Nogueira, para a Psicodelicamente

Foto: Léo Artese (arquivo pessoal)

Como você vê esse atual momento de retomada das pesquisas com psicodélicos? 

Temos até um nome para isso: revolução psicodélica. Eu li um livro de Terence McKenna [etnobotânico americano], no qual ele falava que isso iria acontecer. Vejo como uma revolução no campo da psiquiatria, enquanto nós, do xamanismo, fazemos pelo sagrado. Sei que já existem pesquisas que comprovam a eficácia dos psicodélicos para tratamento de depressão, traumas complicados, com uma eficácia muito maior que os psicotrópicos que são usados atualmente. Então, vejo positivamente esse momento. 

Você vê algum diálogo sendo construído entre esses mundos: da ciência, do conhecimento tradicional e o da espiritualidade?

Acho que o ponto em comum é a cura e o bem estar. Hoje, muitos neurocientistas, psiquiatras e antropólogos realizam trabalhos espirituais com a medicina da floresta [ayahuasca]. Eu mesmo tenho muitos amigos desses campos que frequentam meus trabalhos. Temos um diálogo através do Encontro Brasileiro de Xamanismo. Então, posso afirmar que no xamanismo universal nós já estamos juntos. 

Há uma percepção por parte dos povos indígenas de que, novamente, o conhecimento tradicional não está sendo considerado, embora tenha sido e ainda é a base essencial de estudos em diferentes campos. Considerando sua atuação no xamanismo, como você avalia esse cenário? 

Existem alguns indígenas que possuem essa percepção. Mas posso garantir que muitos líderes, que possuem uma visão mais universal, não condenam, respeitam e aceitam essa expansão. Se a coisa é boa para a humanidade, por que não? Estamos cada vez mais sendo convidados a termos uma visão mais holística da cura. 

Aqui no Brasil, e em outros países, pesquisas começam a investigar o potencial do DMT isolado para uso terapêutico. Há críticas de que o objetivo seja desassociar a substância de seus contextos tradicionais e tornar desnecessária qualquer compensação a esses povos. Qual a sua opinião sobre isso?

Essas substâncias existem desde que o homem era nômade coletor da natureza. Acredito mais que devemos criar políticas para que os povos originários tenham direitos a suas terras. Isso é importante. Direito a uma vida boa, que possam ser felizes, viver em suas comunidades, com seus rituais, no sentido mais absoluto do bem-viver. 

Também se fala que algumas pesquisas colocam de lado uma série de ferramentas usadas em cerimônias de ayahuasca, as quais são fundamentais no processo terapêutico, qual sua opinião sobre esses estudos?

Existem pessoas que jamais procurarão DMT em contexto espiritual. Na verdade, estamos falando da busca pelos estados expandidos de consciência, o que, para mim, é legítimo. Acho bom que você possa buscar o sagrado através das plantas em uma cerimônia, ou através do acompanhamento de um terapeuta. É intrínseco da natureza humana buscar estados expandidos de consciência, não se pode tirar esse direito do ser humano. 

Léo Artese (arquivo pessoal)

Como foi a sua primeira experiência com ayahuasca?

Lembro como se fosse hoje. Depois de beber o daime, comecei a sentir uma coisa leve, gostosa. Quando veio a segunda dose, comecei a sentir uma coisa mais forte. Não sentia mais minhas pernas, eu ficava bailando e não as sentia. Mas sentia que minha alma estava saindo do corpo. Falei: ‘O que é isso que está acontecendo comigo?’ Aí veio uma voz na minha cabeça e disse: ‘Léo, você está sofrendo porque você não se entrega’. Perguntei como poderia me entregar. E lembro da voz me dizendo que eu estava com medo, deveria relaxar. Quando relaxei e me entreguei, aí foi a viagem mais linda, quase que indescritível. Me vi sendo mumificado, em um ritual de mumificação. Depois me senti no Peru com os Incas, me vi com os índios norte-americanos e comecei a entrar também dentro da minha vida…

Como foi o período de pandemia em relação aos trabalhos do Céu da Lua Cheia?

Foi um momento difícil, porque é um lugar onde exercitamos a nossa fé e buscamos força para enfrentar o dia a dia. Fizemos um programa para que os filiados recebessem a bebida em casa, e realizamos transmissões ao vivo até reabrir agora, recentemente, em junho, com número menor, anamneses maiores e sem pessoas com sintomas. Foi bastante desafiador, porque mexeu bastante com a nossa fé e a nossa firmeza. Sem dúvida nenhuma.

Então, os trabalhos presenciais já retornaram?

Teve uma demanda reprimida nesse período em que ficamos parados. Algumas pessoas acabaram indo para outros lugares que abriram antes. Os grandes centros de ayahuasca pararam, enquanto foram sendo criados centros menores que foram se virando, correndo seus riscos. Nós cumprimos os protocolos sanitários. Perdemos durante a pandemia, mas, depois, no pós, a procura aumentou. Hoje, temos que controlar a participação, para evitar aglomerações. Entre os associados de 2019 e 2022, tivemos uma perda de uns 15%, agora temos novas pessoas se filiando.

O que você diria desses 30 anos de trabalhos com ayahuasca?

No decorrer desse tempo todo, tomando essa bebida, aconteceram muitas curas, não só as minhas próprias, mas a de muita gente sem esperança de ter uma nova vida. É uma nova forma de sentir, de perceber e de viver o mundo.

Paula Nogueira

Jornalista, com formação técnica em rádio, pós-graduanda em Gestão da Comunicação Digital e Mídias Sociais. É colaboradora do UOL e da revista Psicodelicamente e atualmente também trabalha na pesquisa da biografia Tião Carreiro – Vida e Viola.

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