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Médicos precisam ‘abrir a mente’ para a cannabis, diz Mara Gordon

No Brasil, o uso da cannabis medicinal atravessa momentos de turbulência. Profissionais e pacientes ainda se recompõem de uma resolução do CFM (Conselho Federal de Medicina) que restringia o uso de produtos apenas à base do canabidiol, um dos cerca de 500 compostos da planta Cannabis Sativa, popularmente chamada de maconha. E apenas para tratamentos de dois tipos de epilepsia, em crianças e adolescentes. Após muitas críticas, a nova norma foi suspensa na última terça (25) para a realização de uma consulta pública que seguirá aberta até o final do ano. Para ajudar a iluminar o debate sob a luz da ciência, a Psicodelicamente conversou com a pesquisadora americana Mara Gordon, pioneira em cannabis medicinal nos Estados Unidos. Na entrevista, realizada antes do imbróglio citado acima, ela falou sobre a dose ideal do medicamento. No mundo todo esse é um desafio para a comunidade médica que quer prescrever a substância. “Será necessária uma boa dose de desconstrução sobre o que aprenderam na academia”. Por aqui, certamente, o desafio será ainda maior. Veja a seguir.

Caroline Apple, para a Psicodelicamente

Foto: Freepik

Como saber a dose certa de cannabis para tratar uma determinada doença diante de uma planta com tantas variedades e complexidades? Esse é um dos principais questionamentos de médicos e pacientes que decidem optar pela terapia canabinoide. A dosagem pode ser um fator decisivo para a efetivação do tratamento ou para a frustração de quem busca a planta para tratar doenças e transtornos.

Além da diversidade da própria erva, sua ação também ocorre em organismos individuais que respondem de formas diferentes mesmo que apresentem a mesma doença e são tratados com a mesma medicação. Isso sem contar o ‘gap’ científico impulsionado pelo proibicionismo e o tabu em relação à planta, que atrasou em décadas os avanços da medicina canabinoide.

Há mais de dez anos, Mara Gordon tem ajudado médicos a entender como dosar a cannabis para tratar várias doenças. Gordon é especializada no desenvolvimento de protocolos de tratamento da cannabis para pacientes críticos e é pioneira em cannabis medicinal nos Estados Unidos. A pesquisadora também é cofundadora da Aunt Zelda, Zelira Therapeutics e OCTOPI Wellness e diretora de várias organizações, incluindo a North Bay Credit Union. Seu trabalho ganhou destaque nos documentários premiados “Weed the People” e “Mary Janes: Women of Weed”.

Em entrevista à Psicodelicamente, Mara contou sobre os desafios de encontrar a dose certa para cada paciente e como a comunidade médica precisa “abrir a mente” para lidar com os complexos medicamentos à base de cannabis.

“Os médicos não são farmacologistas e são treinados para confiar em fontes profissionais externas para segurança e faixas de dosagem. Com a cannabis, eles estão sendo convidados a ter uma abordagem de mente aberta e a confiar em pessoas sem treinamento médico formal para orientação”, diz a pesquisadora.

Psicodelicamente: Existe uma dose ideal para iniciar o tratamento com cannabis?

Mara Gordon: Quando faço uma avaliação para alguém interessado em utilizar medicamentos canabinoides, é imprescindível que eu conheça a experiência anterior e atual do paciente com cannabis antes de começar. Para alguém que é ‘novato’, por exemplo, começo abaixo de 5 mg de THC (tetrahidrocanabinol),  geralmente, 2 mg, e 5mg de CBD (canabidiol). Como eu recomendo a medicina floral inteira, existem outros componentes que precisam ser levados em consideração além do THC e do CBD, como os terpenos e outros canabinoides. O método de ingestão e a idade também devem ser considerados. Quanto mais velho o paciente, menor a dose necessária. É por isso que uma criança pode precisar de centenas de miligramas de canabinoides e um idoso com o mesmo diagnóstico pode precisar de uma fração da dose.

P: Existe alguma doença que tenha uma dose inicial definida?

MG: Até o momento, nenhuma dose foi estabelecida com precisão. Mesmo o Epidiolex [canabidiol], que recebeu a aprovação do FDA (Food and Drug Administration), é ineficaz para muitos pacientes com epilepsia. A dose recomendada é de 5 mg/kg até 10 mg/kg, duas vezes ao dia. E nossa experiência indica que muitas doses necessárias excedem em muito essa quantidade. Dois indivíduos da mesma idade e experiência anterior com cannabis podem exigir doses muito diferentes para alcançar melhores resultados. Todos os medicamentos são feitos sob medida, e isso vale ainda mais para a cannabis. Porém, qualquer pessoa que use a planta deve começar com uma dose subterapêutica para avaliar a sensibilidade, porque o como um produto é fabricado, os compostos químicos da flor e o método de ingestão afetam a escolha e a dose apropriadas do produto.

P: Quanto tempo leva para o paciente apresentar melhora para saber se a dose está correta?

MG: Ao trabalhar com um paciente, é preciso que um objetivo seja determinado antes de iniciar o tratamento. Por exemplo, um paciente com dor óssea como efeito colateral da quimioterapia pode ter como objetivo principal aliviar a dor e como objetivo secundário dormir a noite toda. Identificar um medicamento que seja mais eficaz para aliviar a dor desse paciente pode não ser o melhor para ajudar no sono, mas isso não pode ser previsto com total confiança até que o paciente inicie o regime. O paciente será iniciado com uma dose de avaliação (2-5 mg THC e 5 mg CBD), que será aumentada gradativamente até que os objetivos sejam alcançados, o que significa que encontramos a dose ideal. Mas saiba que isso pode mudar ao longo do tempo e do produto. Os pacientes devem dar feedback aos seus médicos para que possam fazer melhores recomendações e, potencialmente, ajudar futuros pacientes.

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P: Existe um tempo médio em que os pacientes precisam mudar sua dosagem?

MG: Pode ser necessário aumentar ou diminuir a dose dependendo do paciente e dos objetivos estabelecidos. Normalmente, uma dose inicial que não causa efeitos adversos inaceitáveis ​​pode ser aumentada no dia seguinte. Eu encorajo os pacientes a esperar até o dia seguinte antes de tomar mais remédios. Há muitas variáveis que ​​contribuem para os efeitos, como o nível de hidratação, a gordura consumida antes, o ambiente que o paciente está inserido. Ao tomar um produto bem feito, que contém a flor inteira em vez de moléculas isoladas, a dose tende a ficar consistente uma vez que o nível terapêutico foi alcançado. Com produtos isolados e adicionados de terpenos, vemos a necessidade de aumentar a dose com mais frequência.

P: Caso o paciente não apresente melhora, quais os próximos passos?

MG: Uma das coisas mais tristes que ouvi de pacientes novos ou relutantes é: “Tentei cannabis e não funcionou para mim”. Minha resposta é explicar que eles experimentaram cannabis que não era o melhor perfil químico para eles, mas que vale a pena explorar mais essa questão sob supervisão profissional. A não melhoria de um paciente que se trata com cannabis pode ser resultado de má fabricação e rotulagem desonesta dos produtos, ingestão inadequada e perfil químico do produto. O rótulo dos medicamentos precisa incluir o máximo de informações a respeito dos canabinoides e terpenos presentes no produto. Os COAs (Certificados de Análise) devem ser disponibilizados não apenas para o paciente, mas também para os médicos. Ao determinar a dosagem, é importante observar também como o paciente está se sentindo com o medicamento. Mas é importante enfatizar a importância de saber o que está no medicamento além da quantidade de THC e CBD, porque a cannabis é muito complexa.

P: Pode dar um exemplo dessa complexidade?

MG: Se um paciente tem como objetivo o sono ininterrupto e um produto contém terpenos mais estimulantes, a dose não resolverá o problema. Por exemplo, muitos produtos contêm altos níveis de alfa-pineno e limoneno. Esses terpenos têm benefícios potenciais para a saúde, mas podem não ser os melhores para uso noturno. Por outro lado, alguém mantido acordado por causa do TEPT (Transtorno Pós-Traumático) pode encontrar nesse perfil de terpeno o que ele precisa.

P: Existem casos em que a cannabis não fez efeito em nenhuma dosagem?

MG: Muitas das pessoas com quem trabalho vêm até mim com câncer. Nesses casos, é ainda mais importante estabelecer objetivos. Um paciente procurava alívio da dor neuropática relacionada à quimioterapia, substituição farmacêutica e redução do tumor. Ele conseguiu atingir os dois primeiros objetivos, mas não conseguiu atingir um nível de dose terapêutica que resultou na redução do tumor. Isso não quer dizer que teria funcionado em uma dose mais alta, mas, no caso dele, a doença continuou a progredir. Ele tinha uma melhor qualidade de vida sem a dor e os efeitos colaterais desconfortáveis ​​de certos produtos farmacêuticos e confirmou que o uso de cannabis valia a pena. Conheci duas mulheres (mãe e filha) que não sentem nada com a cannabis – independentemente do nível de dosagem, mas isso não significa que elas não tenham recebido benefícios para a saúde. Não é sobre ficar ‘alto’. Trata-se de diminuir algum sofrimento. A mulher mais velha estava experimentando uma ansiedade debilitante que foi tratada com um produto rico em CBD.

P: Qual é o maior problema que um paciente pode enfrentar com a dosagem errada?

MG: Se a dose for muito alta, pode fazer com que o paciente sinta-se desconfortável por algumas horas até que os efeitos desapareçam. Se for muito baixa, não atenderá aos objetivos. É preciso investigar para ter certeza de onde o efeito adverso está se originando. É importante não dirigir ou tomar decisões importantes até que os efeitos sejam entendidos. Como a cannabis é bifásica, ela pode causar o que está sendo tratado, então o ideal é começar com uma dose baixa e aumentar lentamente para evitar efeitos colaterais negativos.

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