Revista digital de jornalismo psicodélico

Search

Documentário mostra batalha de pacientes por cannabis medicinal

“O Outro Mundo de Sofia” conta história de uma família em busca de tratamento que resume luta pela regulação da maconha no Brasil

Carlos Minuano, para a Psicodelicamente

Foto: Matias Maxx/Apepi

Com 4 anos e uma síndrome congênita rara, Sofia Langenbach precisava de um óleo extraído da maconha para não sofrer crises de convulsões severas. Para garantir o tratamento da filha, a família teve que enfrentar forças poderosas, como a justiça, o mercado milionário da indústria farmacêutica e a opinião pública. A luta dramática que transformou a mãe da menina em uma das principais ativistas da cannabis no país é a história central do documentário “O Outro Mundo de Sofia”, que estreou esta semana no canal GNT.

O filme retrata uma ‘via crucis’ que começou há mais de 10 anos. Em 2013, a advogada Margarete Brito, trouxe dos EUA o primeiro produto para sua filha Sofia, hoje com 14 anos. “Ainda era considerado tráfico internacional, dei para ela sem saber o que poderia acontecer, a minha base de informação era que tinha outra criança tomando com bons resultados.”

Era uma realidade bem diferente da atual, relembra Margarete, ou Guete, como ficou conhecida no meio do ativismo canábico. “Não tinha nenhum médico prescritor, nenhuma associação, haviam apenas pacientes desesperados tentando importar produtos que custavam no mínimo 500 dólares.” 

Mesmo sabendo da proibição, Guete e o marido, o designer Marcos Lins Langenbach, resolveram plantar alguns pés de cannabis sativa no  apartamento onde moravam, em Botafogo, na zona sul do Rio. Pouco depois, em 2016, a família se tornou a primeira no Brasil a conseguir autorização da Justiça para cultivar maconha como medicamento.    

Guete e a filha em cena do filme “O Outro Mundo de Sofia”/Reprodução

Desafios para cultivar cannabis 

A luta pelo tratamento com cannabis medicinal para Sofia acabou se tornando uma causa para seus pais. E assim acabou transformando também a vida de outras milhares de pessoas. Além de dar o remédio para a filha, o casal começou a ajudar outros pacientes. E o cultivo, que começou com uma pequena hortinha na varanda do apartamento, cresceu tanto que precisou de um espaço maior. 

Em 2020, Guete e Marcos compraram uma fazenda para plantar maconha em Paty do Alferes, no interior do Estado do Rio. É onde funciona hoje o cultivo da Apepi (Associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal), a segunda maior do Brasil, que produz e distribui remédios feitos a partir da planta para mais de 6 mil famílias.

Ao retratar a batalha de Guete e Marcos pelo tratamento da filha, uma história que se entrelaça ao drama de milhares de pessoas, o documentário “O Outro Mundo de Sofia” busca acender o debate sobre a importância da cannabis para uso medicinal. 

O filme, dirigido por Raphael Erichsen, mostra os desafios da mãe de Sofia para manter e ampliar o cultivo da planta. O enredo central abre caminho para entrar em temas sensíveis e atuais, como a descriminalização da maconha, a importância de estudos científicos sobre as propriedades curativas da planta e a desconstrução de narrativas proibicionistas. 

“A mesma planta que serve de medicamento é criminalizado e gera morte nas periferias do país. É chocante como, apesar dos avanços, ainda não se discute isso”, comenta Erichsen. Em 2014, o diretor abordou a luta de mães para conseguir remédios à base da maconha para seus filhos no filme “Ilegal: a vida não espera”, codirigido com o jornalista Tarso Araújo.

Do cultivo ao ‘cannabusiness’

A ideia de fazer “O Outro Mundo de Sofia”, segundo o diretor, surgiu cinco anos depois de lançar “Ilegal”, quando reencontrou Guete, no final de 2019. O filme compreende a trajetória dela como um todo, uma jornada que serve também como síntese da própria história da luta pela regulação da maconha nos últimos 10 anos”, conta Erichsen. 

O filme caminha por um terreno complexo de contornos que estão ainda se definindo. “Tem uma indústria se forjando, que vem da Big Farma e do próprio cannabusiness”. O diretor conta que viu isso na Medical Cannabis Fair, evento que aconteceu no início do mês no Expo Center Norte, em São Paulo, onde o filme foi exibido. “Tem muito dinheiro envolvido”, comenta ele.

Erichsen considera importante olhar para a questão de uma maneira ampla. “Existem muitos atores sociais envolvidos”. Enquanto o mercado de ‘cannabusiness’ se consolida, associações de pacientes aguardam há anos alguma regulamentação. “O PL 399 [aprovado em 2021, que regula cultivo e comércio de cannabis para fins medicinais e industriais] está parado.” 

O diretor explica que o filme busca provocar esse olhar mais integral para a cannabis, incluindo os efeitos que a proibição da planta causa. “Estamos num momento de construção, temos a oportunidade de ir para além de simplesmente fazer com que um mercado opere.” 

 O diretor cita como exemplo alguns estados americanos, como Nova Iorque, onde estão sendo criadas políticas inovadoras de inclusão de populações historicamente prejudicadas pela guerra às drogas.

Ele conta que por lá a indústria está procurando inserir essas populações e territórios e pensando maneiras de financiamento, reparação ou reorganização. “Temos que olhar o problema como um todo, algo que não vejo acontecer aqui”

“Estado e legisladores estão tentando encontrar maneiras de acomodar o mercado e pronto”. Para Erichsen, falta olhar, por exemplo, para as dificuldades que as associações enfrentam. “São elas que estão à frente e são pioneiras na condução dos avanços que a gente teve nos últimos anos.”

Apesar dos inúmeros obstáculos que ainda há no caminho, a ativista Guete olha para o momento atual com otimismo. “Hoje temos cerca de 2 mil médicos prescritores, dezenas de universidades em parceria de pesquisa com produtos e plantas da Apepi, cerca de cinco associações com autorização que fornecem produtos a baixo custo para cerca de 70 mil pacientes por mês.”

Além da ativista, o filme traz ainda outras vozes importantes do meio canábico, como o neurocientista e biólogo Sidarta Ribeiro, o autor Francisco Bosco, a socióloga Julita Lemgruber e o deputado federal e pastor Henrique Vieira. O documentário “O Outro Mundo de Sofia” (uma coprodução da GNT e Kromaki Filmes) será exibido na madrugada de domingo (14) para segunda, no Dia das Mães, 0h30, e está disponível nas plataformas do GloboPlay e do canal GNT.

(Colaborou Glória Maria)

Carlos Minuano

Jornalista e escritor, há mais de duas décadas escreve sobre psicodélicos nos principais veículos jornalísticos do país, como nas revistas CartaCapital, Rolling Stone, jornal Metro. É colaborador do portal UOL desde 2012. Além de dirigir a Psicodelicamente, atualmente trabalha na pesquisa para um livro sobre psicodélicos, que será publicado pela editora Elefante. É autor de duas biografias, “Tons de Clô” (do estilista Clodovil Hernandes) em adaptação para uma série de streaming, e “Raul por trás das canções” (do músico Raul Seixas), ambas publicadas pelo grupo editorial Record.

Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Relacionados

apoio

parceiros

A revista Psicodelicamente é uma publicação da Tucunacá Edições e Produções LTDA.