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Cannabis ajudou campeão mundial de jiu-jitsu a continuar no esporte

Lutador Bruno Altoé, que acaba de vencer o Pan-Americano nos EUA, fala de benefícios do CBD; uso médico cresce entre atletas

Carlos Minuano, para a Psicodelicamente

Foto: Divulgação

Após migrar do judô para o jiu-jitsu, foi graças à cannabis medicinal que o atleta capixaba, Bruno Altoé, conseguiu prosseguir com uma carreira vitoriosa na luta. “Eu já vinha com uma série de lesões crônicas, com o corpo muito judiado e desgastado.” 

No judô desde os 13 anos, Altoé fez a transição para o jiu-jitsu aos 25 anos. Hoje com 31, é campeão mundial da modalidade. Em fevereiro, ele venceu o campeonato europeu na França. E no último domingo, 26, foi campeão do Pan-Americano na Flórida, nos Estados Unidos. 

Foi também nos EUA que o CBD entrou na sua vida. Ele começou a se interessar quando foi disputar o mundial na Califórnia, durante um camp dentro de uma academia de MMA, em 2021. “Lá, a turma fazia muito uso das pomadas e dos óleos para ‘recovery’ [recuperação] de pancadas, dor crônica, estresse e ansiedade”, conta Altoé.

A cannabis, planta popularmente conhecida como maconha, contém mais de 700 compostos, entre eles o CBD (ou canabidiol) e o THC (tetrahidrocanabinol, que causa efeitos psicoativos), ambos com aplicações terapêuticas.

A quantidade de benefícios chamou a atenção do atleta. Quando retornou ao Brasil, o lutador começou a pesquisar o assunto e resolveu fazer uma consulta médica. Logo em seguida, passou a fazer o uso de medicamentos à base de cannabis.

 “Me ajudaram e continuam me ajudando demais na recuperação muscular, no bem-estar, na insônia, eu tinha muito problema com sono”, diz o atleta. E os benefícios não ficaram só na área da saúde. A empresa fabricante dos produtos que ele começou a usar, a Carmen’s Medicinals, resolveu patrocinar o lutador.

“Esse apoio me ajuda muito nas competições, principalmente nas internacionais, que tem um custo muito alto”. Segundo ele, principalmente nos EUA, é cada vez maior o número de atletas patrocinados por marcas de canabidiol.

E o investimento não é só nos atletas, prossegue Altoé. “Nos EUA, os maiores eventos esportivos de todas as modalidades têm patrocínios de marcas de cannabis medicinal. Segundo ele, das menores às maiores, as empresas do setor estão apostando alto no esporte.

Benefícios para atletas

Nos últimos anos, tem crescido o uso de cannabis medicinal no campo esportivo. Atletas profissionais e amadores estão usando para diversas condições de saúde.

As principais utilizações com bons resultados são para recuperação de dor, controle da ansiedade e insônia pré-prova, diz Gilberto Kocerginsky, médico do esporte e prescritor de cannabis medicinal, que trabalha no acompanhamento de atletas. “Um deles conseguiu um pódio nas últimas olimpíadas.” 

O médico diz que entre seus pacientes há também atletas amadores que alcançaram benefícios. “Relatam que o uso da cannabis facilita a prática de atividade física.”

Outra vantagem da cannabis para casos de dor, é a de substituir o uso de medicamentos tradicionais, como opioides, anti-inflamatórios e analgésicos, que podem ter efeitos colaterais indesejáveis e até causar dependência.

Kocerginsky afirma trabalhar com cannabis medicinal desde 2014 e conta ter feito uma formação nos Estados Unidos antes de começar a prescrever. Por lá, os atletas já usam há bastante tempo esses produtos. Muitos utilizam para melhorar a qualidade de vida e não apenas para tratamento de doenças, conta o médico.

Nos EUA, assim como a Carmen´s Medicinals está fazendo no Brasil com o lutador Bruno Altoé, empresas do setor estão patrocinando atletas. “Existem até alguns que são embaixadores da cannabis medicinal dentro do esporte, como nas ligas de NBA [basquete], MMA e NFL [futebol americano]”, diz Kocerginsky. 

“Pode isso, Arnaldo?” 

Se estivéssemos em uma partida de futebol narrada pelo famoso locutor Galvão Bueno e seu parceiro de longa data, o ex-árbitro Arnaldo César Coelho, a pergunta mais óbvia seria: “Pode isso, Arnaldo?”. O conhecido bordão, certamente, cabe no contexto do uso da cannabis como suplemento esportivo. Principalmente no caso de atletas profissionais, ainda há fartas doses de dúvidas e também de riscos.

Vale lembrar a ‘via crucis’ da estrela do basquete norte-americano,  Brittney Griner, duas vezes campeã da WNBA (Women’s National Basketball Association), que foi presa no início de 2022 no aeroporto de Moscou por entrar com óleo de CBD na Rússia. A atleta foi acusada de tráfico de drogas e ficou presa durante um ano até que sua liberdade foi negociada pelo governo dos EUA em dezembro. 

Entretanto, o médico Gilberto Kocerginsky explica que o CBD (ou canabidiol), desde 2018, não consta mais na lista de substâncias proibidas em competições esportivas da Wada (Agência Mundial Antidoping). 

“O canabidiol é a substância da cannabis com melhor ação anti-inflamatória e também com mais benefícios sobre sono e ansiedade”, explica o médico. Ele ressalta que qualquer outro fitocanibinoide, como o THC, em competição não é autorizado. 

Acesso no meio esportivo

De modo geral, se avançou muito em termos de legislação no Brasil, defende Kocerginsky. “Está bem ampla, a gente pode prescrever de uma forma mais ativa, facilitou muito o acesso”. Isso apesar do CFM (Conselho Federal de Medicina), que em outubro de 2022, tentou restringir a autorização apenas para uso de CBD nos tratamentos de epilepsia refratária em crianças e adolescentes com síndrome de Dravet e Lennox-Gastaut ou complexo de esclerose tuberosa. Em meio ao fogo cruzado de críticas vindas de todos os lados, dez dias depois o órgão recuou e abriu uma consulta pública para a elaboração de uma nova norma, que até o momento não foi divulgado.

Na avaliação do médico, atualmente no Brasil, o entendimento em relação ao uso de THC chega a ser mais evoluído do que em alguns países da Europa. Segundo ele, o fitocanabinoide tem apresentado bons resultados no tratamento de determinados tipos de doenças.

O especialista cita como exemplo, a Síndrome de Tourette (transtorno neuropsiquiátrico caracterizado por tiques múltiplos, motores ou vocais), e controle de dor aguda para pacientes com esclerose lateral amiotrófica e múltipla. “Temos atletas com essas condições.”

O médico conta ter entre seus pacientes, uma ciclista paralímpica, campeã panamericana, médica, que faz uso do THC para controlar os sintomas da esclerose múltipla. Kocerginsky esclarece que ela tem uma autorização específica, de uso terapêutico de exceção.

De acordo com o especialista, quando há indicações para cannabis medicinal ou para qualquer substância proibida, é possível pedir uma autorização de uso terapêutico para a Wada, que aqui no Brasil é representada pela ABCD (Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem). 

Outro paciente de Kocerginsky, que obteve bons resultados com a cannabis é um atleta do remo, de nível olímpico (que ele diz não poder revelar o nome). “Ele tem Síndrome de Tourette e TDH e apresentou uma melhora significativa nas relações sociais, porque o transtorno causa gestos compulsivos ou falas repetitivas, geralmente palavrões.”

Outro atleta conhecido com Síndrome de Tourette que revelou fazer uso de cannabis medicinal é o lutador Cara de Sapato. O atleta de MMA durante sua participação no BBB deste ano contou aos colegas usar CBD como tratamento médico. 

Nos últimos anos, tem crescido o uso de cannabis medicinal no campo esportivo. Foto: Freepik

‘Falta regulamentação para uso esportivo’

Atualmente no Brasil, um dos entraves para o crescimento do uso da cannabis medicinal entre atletas é a falta de uma regulamentação para esse uso, avalia o médico Romeu Fadul, diretor científico da Biocase Brasil, que atua no setor de cannabis e de psicodélicos. “Diretrizes específicas para o esporte ainda não foram estabelecidas.”  

“Há uma falta de clareza sobre quais são os procedimentos permitidos e aceitáveis para que um atleta possa utilizar a cannabis medicinal de forma terapêutica sem ferir as regras antidoping”, prossegue o médico. Segundo ele, os únicos produtos autorizados atualmente são os de CBD isolado e óleos broad spectrum (ambos sem THC).

O uso da cannabis medicinal com até 0,2% de THC (cânhamo) pode trazer benefícios no desempenho do atleta, como melhorar a cognição, promover uma recuperação muscular mais rápida e melhorar a ansiedade antes das competições, explica Fadul.

Na opinião do médico, a falta de conscientização sobre os benefícios da planta para atletas também é um obstáculo a ser superado. “Muitas pessoas ainda associam o uso de cannabis apenas ao uso recreativo e não estão cientes de que pode ser utilizada como um tratamento alternativo para várias situações, incluindo condições que afetam os atletas.”

Ele aponta ainda a estigmatização associada ao uso de cannabis, que leva equipes, patrocinadores, entre outros, a resistirem ao uso da substância no meio esportivo.

Por que o THC ainda é proibido pela Wada?

A Wada proíbe o THC por ser uma substância psicoativa, que pode ser utilizada como droga recreativa, Em níveis elevados, pode prejudicar o desempenho esportivo de um atleta, aponta Fadul. “Mínimas quantidades de THC são consideradas doping”.

Segundo o médico do esporte, Gilberto Kocerginsky, o THC ainda é visto pela agência como uma droga de abuso. “Não querem relacionar o uso recreativo com os atletas, apesar de vários deles [nos EUA] fumarem maconha de forma aberta.”

E uma preocupação que aflige atletas é o que ainda não se sabe sobre o tratamento com esses produtos por longos períodos. “Se considerarmos a utilização de cannabis recreativa, inalada ou fumada, o uso continuado pode ter efeitos negativos na saúde física e mental”, comenta o médico Romeu Fadul.

Pesquisas avançam

Existem vários estudos clínicos sobre cannabis medicinal e especificamente sobre cada fitocanabinoide, principalmente o THC e CBD. De acordo com o médico Gilberto Kocerginsky, também estão surgindo estudos sobre o uso de CBG (cannabigerol) e o CBN (canabinóide derivado da decomposição das moléculas de THC), entre atletas. 

Segundo o médico, existem vários artigos sobre o assunto. Um dos mais emblemáticos, citado por ele, é o “Cannabidiol in sport: Ergogenic or else?” (em português, CBD no esporte, recurso ergogênico ou algo mais?), que aborda as diferentes propriedades do CBD descobertas em estudos pré-clínicos. 

Pesquisas avançam, mas enfrentam obstáculos, ressalta Kocerginsky. “O atleta de elite faz parte de uma população muito reduzida no mundo inteiro”. Outro entrave apontado por ele é a dificuldade de conduzir estudos, porque em alguns casos esbarram no código de ética.

“Induzi-los a usarem o THC numa competição seria antiético, porque a Wada puniria esse atleta, então, teoricamente a pesquisa só poderia acontecer se a agência autorizasse, o que até onde eu sei é muito pouco provável.”

Atletas profissionais e amadores estão usando para diversas condições de saúde. Foto: Freepik

Mercado pode crescer

Se houvesse uma maior aceitação da cannabis no meio esportivo brasileiro, o país poderia movimentar mais de R$ 900 milhões por ano com esse mercado, sendo que, desse total, R$ 297,4 milhões seriam arrecadados de impostos. É o que destaca o relatório “Cannabis e Esportes”, da Kaya Mind, empresa brasileira especializada em dados sobre o mercado de cannabis, divulgado no final de 2022.

Os números mostram que atletas profissionais e amadores ainda não têm amplo acesso a esses produtos por causa das limitações do setor, como a disseminação do uso medicinal da cannabis entre os profissionais de saúde e a regulamentação em vigor no país. 

A empresa estima que mais de 800 mil atletas no Brasil seriam potenciais usuários desses produtos para o tratamento de uma extensa variedade de condições médicas. Desse total, 61 mil seriam atletas profissionais, 427 mil amadores e 339 mil eventuais. 

“Caso houvesse uma maior receptividade e um marco regulatório em torno da planta, o potencial do mercado da cannabis no Brasil em relação ao meio esportivo seria enorme”, observa Maria Eugenia Riscala, cofundadora e CEO da Kaya Mind.

Carlos Minuano

Jornalista e escritor, há mais de duas décadas escreve sobre psicodélicos nos principais veículos jornalísticos do país, como nas revistas CartaCapital, Rolling Stone, jornal Metro. É colaborador do portal UOL desde 2012. Além de dirigir a Psicodelicamente, atualmente trabalha na pesquisa para um livro sobre psicodélicos, que será publicado pela editora Elefante. É autor de duas biografias, “Tons de Clô” (do estilista Clodovil Hernandes) em adaptação para uma série de streaming, e “Raul por trás das canções” (do músico Raul Seixas), ambas publicadas pelo grupo editorial Record.

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