Revista digital de jornalismo psicodélico

Search

Brasileiros são destaque em evento sobre psicodélicos nos EUA

Maior conferência sobre o tema já realizado até o momento reúne especialistas em Denver para debater avanços de um futuro pós-proibição

Carlos Minuano, para a Psicodelicamente

Foto: Freepik

Com cerca de 400 palestrantes e quase 10 mil ingressos vendidos dois meses antes de começar, o congresso Psychedelic Science 2023, promete ser histórico. O evento, realizado pela Maps (Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos), que acontece em Denver, Colorado (EUA) esta semana, já ficou conhecido como o maior encontro sobre o tema já realizado no planeta até o momento. A participação de cientistas brasileiros e líderes indígenas reafirmam a potência do país nesse campo de estudos, especialmente com a ayahuasca, bebida psicoativa de origem amazônica.

“Em 2017, durante a última edição da conferência, fazendo um paralelo com o sucesso brasileiro no surfe, surgiu essa brincadeira sobre uma ‘brazilian storm’ (tempestade brasileira) de cientistas psicodélicos, pelo visto esse ano a onda será ainda maior”, comemora o neurocientista Stevens Rehen, que integra o time de conferencistas brasileiros no congresso. Em sua apresentação, o cientista abordou o uso de organoides cerebrais para estudar os alucinógenos.

Durante cinco dias, uma programação diversa e recheada de painéis, eventos e workshops buscam cobrir a amplitude do tema, debater avanços da ciência, interseção entre psicodélicos e religião e refletir sobre cenários possíveis em um futuro pós-proibição. “Estamos alcançando pessoas que nunca participaram de um evento psicodélico antes. E temos muitos palestrantes vindos de fora, como por exemplo todo um contingente do Brasil”, disse Liana Gillooly, da área de iniciativa estratégica da Maps, ao site americano Lucid News.  

Outro destaque na programação é a participação do Instituto Chacruna de Plantas Psicodélicas Medicinais, criado pela antropóloga brasileira Bia Labate, que vive na Califórnia desde 2017. A ONG focada em promover a educação pública sobre o tema, e que possui uma representação na América Latina, oferece durante todo o evento um cardápio diverso de atividades, com palestras, painéis e workshops.

O Instituto Chacruna também levou para o evento é a tenda “Plantas Sagradas, Diálogos Decoloniais e Música” com experiências cerimoniais de rapé abertas ao público, conversas sobre temas como o uso tradicional do tabaco, ayahuasca, xamanismo, reciprocidade e direitos indígenas, conservação e ecologia de plantas medicinais psicodélicas. 

Um dos convidados brasileiros do instituto é o indígena Huni Kuin Leopardo Yawa Bane, que participa de um debate sobre a globalização da ayahuasca na sexta, 23. Apesar da presença de lideranças de povos originários no congresso, a antropóloga Bia Labate não acredita que seja sinal ainda de um “renascimento xamânico” dentro do movimento que ficou conhecido como renascença psicodélica.   

“Os indígenas sempre foram convidados para conferências no circuito psicodélico”, observa Labate. Para ela, a participação no congresso é relativamente pequena. Além do Huni Kuin no espaço do instituto, o líder Yawanawá Nixiwaka Biraci integra a extensa programação de conferências principais. 

“No sul global, especialmente no Brasil, pode-se dizer que o movimento indigena está em maior diálogo com os circuitos urbanos de troca e consumo das medicinas da floresta”. Labate cita como exemplos festivais xamânicos e a organização de conferências indígenas de ayahuasca. “Isto tudo é muito bom, mas não está chegando com a força que poderia nos EUA.”

Público no Psychedelic Science 2023/Reprodução

Cientistas brasileiros em Denver 

A conferência marca um momento revolucionário para o campo e promete ser um catalisador para o futuro da pesquisa. Também participam do evento, cientistas do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, um dos grupos mais consistentes de investigação dos psicodélicos no Brasil. Entre eles, o físico e neurocientista Dráulio de Araújo, que fará duas apresentações.

No congresso, o pesquisador destaca resultados de pesquisas realizadas pelo grupo em torno dos efeitos agudos da ayahuasca no cérebro humano, em estudos com ressonância funcional com eletroencefalografia. “Vou falar da perspectiva de que talvez a ayahuasca de alguma maneira confira a habilidade de enxergar de olhos fechados os nossos próprios pensamentos e as nossas próprias emoções.” 

O pesquisador traz ainda estudos atuais com DMT, substância do grupo das triptaminas, um dos princípios ativos da bebida ayahuasca, também presente em raízes, caules e folhas de diversas plantas, e que é produzido pelo organismo de seres humanos e de animais mamíferos, marinhos e anfíbios. “Farei um apanhado geral dos trabalhos que estamos fazendo, incluindo um estudo sobre avaliação de mudanças cognitivas de percepção de imagética visual e estudos com a planta jurema”, conta Araújo.

‘Não são só os estudos que estão avançando’

Outra pesquisadora da UFRN, a fisiologista Nicole Leite Galvão-Coelho se diz animada não apenas pelo tamanho e pela participação do time brasileiro no congresso em Denver, mas também pelo momento em que ele ocorre. “Não são só os estudos que estão avançando com resultados positivos, também avança a descriminalização dos psicodélicos clássicos em alguns locais dos Estados Unidos e na Austrália, e a regulamentação do uso terapêutico, que é nosso principal objetivo.” 

Ela também destaca a inclusão no debate da questão das culturas tradicionais, do reconhecimento e valorização dos povos ancestrais. “Eles já tinham parte desse conhecimento que a gente vem aí trabalhando sobre ele”, ressalta a cientista. Em sua apresentação no Psychedelic Science 2023, Nicole fala sobre a resposta biológica antidepressiva induzida pela ayahuasca em um estudo clínico que o grupo do Instituto do Cérebro realizou, coordenado por Dráulio de Araújo. 

Foi o primeiro no mundo a avaliar um psicodélico clássico no tratamento da depressão em um estudo duplo-cego randomizado, o chamado padrão-ouro das pesquisas clínicas. “Resultados foram muito relevantes, mais de 30% de remissão, mais de 60% de resposta, após uma única dose de ayahuasca”, ressalta a pesquisadora.

Ela também pretende destacar análises de marcadores biológicos feitas nos estudos. “Vou apresentar a resposta anti-inflamatória da ayahuasca, 48 horas depois da ingestão”. Segundo ela, o chá psicodélico induziu um resultado muito importante. 

“Nossos pacientes tinham um nível de inflamação sistêmica elevado, a bebida regulou o sistema de resposta ao estresse e induziu a neuroplasticidade (a capacidade que o cérebro tem de expandir conexões).” 

Rick Doblin, fundador da Maps, na abertura do congresso em Denver. Foto: Flávia Feitosa/Psicodelicamente

Sonhar acordado

Outro nome importante da ciência psicodélica brasileira no congresso é Sidarta Ribeiro, neurocientista que também integra o time do Instituto do Cérebro. Ele apresenta no evento resultados de um estudo em ratos com sensores implantados no cérebro para detectar atividade elétrica. 

Os animais receberam doses de uma versão sintética do psicodélico clássico, 5-MeO-DMT, composto obtido do veneno do sapo do Rio Colorado (Incilius alvarius). O experimento, segundo Ribeiro, apresentou evidências de que os efeitos do 5-MeO-DMT produzem algo como sonhar acordado. 

“Embora o animal esteja acordado, em vigília, se movimentando o cérebro dele do ponto de vista das ondas cerebrais continua variando em ciclos entre a vigília, o sono de ondas lentas e o sono REM.” 

Segundo Ribeiro, é a primeira evidência empírica de que a experiência psicodélica funde comportamentos de vigília com ondas cerebrais cujas características espectrais são semelhantes às que ocorrem no sono de ondas lentas e no sono REM.

Para ele, um dos pontos altos nos debates durante o congresso deve ser a iminência da aprovação do MDMA (metilenodioximetanfetamina) pelo FDA nos Estados Unidos para tratamento de TEPT (Transtorno do Estresse Pós-Traumático).

O neurocientista também participa do track sobre indígenas organizado pelo Instituto Chacruna. Ele também lamenta que o número de representantes de povos tradicionais seja pequeno no congresso. “A discussão sobre o Protocolo de Nagoya e a repartição de benefícios é mais urgente do que nunca.”

Outra integrante do time brasileiro, é a psicóloga de origem alemã, mas atualmente no grupo da UFRN, Isabel Wiessner, autora de um estudo brasileiro recente com LSD em seres humanos, junto com o psiquiatra Luis Fernando Tófoli, da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Ela também é uma das professoras do primeiro curso de pós-graduação sobre terapia psicodélica, realizado pelo Instituto Alma Viva.

O neurocientista Eduardo Schenberg, do Instituto Phaneros, responsável pelo primeiro ensaio clínico do Brasil com MDMA, que esteve em todas as três edições anteriores do congresso da MAPS, em 2010, 2011 e 2017, participa novamente da edição deste ano. Ele reforça o coro que afirma ser  um momento histórico. “É impressionante ver o alcance crescendo e ultrapassando os preconceitos culturais e barreiras políticas.” 

O Psychedelic Science 2023 em Denver tem a participação também de celebridades da cena psicodélica mundial, como Michael Pollan, Wade Davis, Paul Stamets, Rick Doblin (fundador da Maps) e James Fadiman, autor do clássico “O Guia do Explorador Psicodélico”, que acaba de ganhar uma edição brasileira (editora Degustar). 

A empolgação em torno do evento que acontece durante toda essa semana não é sem razão. Pesquisadores e psiconautas em geral esperam que as contundentes evidências científicas de pesquisas recentes sobre o potencial dos psicodélicos consigam vencer o obscurantismo do proibicionismo. 

Se cientistas estiverem certos, depois de décadas de proibição, os psicodélicos poderão ajudar a redefinir o futuro, abrindo caminho para uma mudança de paradigma na abordagem dos tratamentos de transtornos de saúde mental. 

Pacientes em todo o mundo com patologias graves que podem se beneficiar com novos tratamentos com essas substâncias também aguardam ansiosamente por essa virada de chave. Aguardemos os próximos capítulos.

A série Yes, nós temos ciência psicodélica, publicada pela revista CartaCapital em parceria com a Psicodelicamente e apoio do Instituto Serrapilheira, vai contar a curiosa e intrigante história da pesquisa científica com substâncias psicodélicas no Brasil. 

Carlos Minuano

Jornalista e escritor, há mais de duas décadas escreve sobre psicodélicos nos principais veículos jornalísticos do país, como nas revistas CartaCapital, Rolling Stone, jornal Metro. É colaborador do portal UOL desde 2012. Além de dirigir a Psicodelicamente, atualmente trabalha na pesquisa para um livro sobre psicodélicos, que será publicado pela editora Elefante. É autor de duas biografias, “Tons de Clô” (do estilista Clodovil Hernandes) em adaptação para uma série de streaming, e “Raul por trás das canções” (do músico Raul Seixas), ambas publicadas pelo grupo editorial Record.

Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Relacionados

apoio

parceiros

A revista Psicodelicamente é uma publicação da Tucunacá Edições e Produções LTDA.