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Psicodélicos na cracolândia: ibogaína e ayahuasca na luta contra o vício

As recentes operações violentas no centro de São Paulo, de repressão ao tráfico e uso de crack, e para dispersar usuários da região que ficou conhecida como cracolândia, além de revelar a ausência de políticas sociais e de saúde, sinalizam fortemente a urgência de se buscar novas formas de tratar a dependência. Embora ainda incipientes e isoladas, iniciativas com substâncias psicodélicas estão entre alternativas que apresentam novas perspectivas. Especialistas defendem que os efeitos terapêuticos da ayahuasca e ibogaína podem ajudar, entre outras coisas, na redução da compulsão pela droga, também chamada de “fissura”.

Nathan Fernandes, para a Psicodelicamente

Foto: WokandaPix - Pixabay

Para Rogério, a vida não é uma estrada em linha reta. Por causa da dependência do crack, sua trajetória se parece mais com uma montanha russa desgovernada. Expulso de casa pelo pai depois dos 18 anos, já por causa do uso problemático de drogas, ele passou a viver nas ruas da região da cracolândia, onde, entre idas e vindas, mergulhou no crack e chegou a ser preso, depois de se tornar traficante. 

Em um looping na montanha russa da vida, Rogério foi convidado a passar uns dias em uma instituição que realizava cerimônias com ayahuasca. Depois de uma experiência com o chá, constatou: “É importante tomar daime porque o daime cobra você do que você tinha prometido pra você mesmo”. Se não resolveu todos os problemas de sua vida, a bebida o apresentou a novas perspectivas, ajudando-o a restabelecer laços que já haviam desatado. 

A história de Rogério, contada no livro “O Uso Ritual de Ayahuasca na atenção à população em situação de rua” (EDUFBA), do psicólogo Bruno Ramos Gomes, é um retrato comum dos frequentadores da cracolândia. São histórias como essa que, geralmente nos períodos eleitorais, são varridas pelas operações de “limpeza” realizadas na região. No entanto, pesquisas como a de Gomes, que também presidiu o Centro de Convivência É de Lei por cinco anos e fundou o coletivo ResPire de redução de danos, ajudam a lembrar que existem outras formas de pensar no tratamento de pessoas que fazem uso abusivo de substâncias. Os psicodélicos são uma delas.

Para o psicólogo, os efeitos terapêuticos de substâncias como ayahuasca (beberagem amazônica usada em rituais indígenas e por grupos religiosos), e ibogaína (derivado sintético da iboga, planta nativa de países africanos como o Gabão, e também usada de forma ritualística) podem ajudar, entre outras coisas, na redução ou corte da fissura. 

“A fissura é um dos principais fatores de descontrole. A pessoa não quer usar, mas quando vê já está maquinando como conseguir a droga. São comportamentos quase automáticos como esse que os psicodélicos ajudam a reduzir”, explica Gomes, à Psicodelicamente. Além disso, os insights sobre si e a questão da sociabilidade dentro do grupo também ajudam na criação de novos padrões de relacionamento com as drogas. 

Apesar dos benefícios observados, vale ressaltar que existem restrições: o uso de substâncias psicodélicas não é recomendado para pessoas com transtornos bipolares ou de esquizofrenia, por exemplo. 

 

Psicodélicos e o alcoolismo

O uso de psicodélicos no tratamento de dependência de drogas não é novo. Nos anos 1950, os psiquiatras Humphry Osmond e Abram Hoffer já sabiam que o LSD poderia ajudar pessoas que enfrentavam problemas com o álcool. Como escreveu o jornalista Michael Pollan, em “Como Mudar a Sua Mente” (Companhia das Letras): “No fim da década de 1950, o LSD era amplamente visto na América do Norte como uma cura milagrosa para o alcoolismo”. 

Bill Wilson, cofundador dos Alcoólicos Anônimos, teve contato com essas ideias. Depois de acompanhar uma série de pesquisas realizadas na Universidade da Califórnia, ele concluiu que o LSD poderia provocar o despertar espiritual que considerava necessário para alcançar a sobriedade — um dos doze passos do programa dos AA. Mas seus colegas foram contra, sem considerar que os prejuízos causados pelo álcool não se comparam aos efeitos psicodélicos. 

Nos anos seguintes, as pesquisas com psicodélicos mergulharam nas sombras por causa da política de guerra às drogas, perpetrada pelos EUA. Só mais recentemente, com o surgimento do que se convencionou chamar de renascimento psicodélico, a partir dos anos 2000, as pesquisas foram retomadas com mais intensidade. 

No Brasil, desde os anos 1990, existem projetos na cracolândia que buscam tratar de dependentes químicos com o auxílio dos psicodélicos. É o caso da Associação Minha Rua, Minha Casa, onde Rogério, que abriu esta reportagem, viveu suas experiências. 

A organização foi fundada pelo advogado Walter de Lucca, que frequentava o Santo Daime e que estudou o tratamento de dependência por meio de dietas com ayahuasca e outras plantas, utilizada por curandeiros no Peru. Ele passou a usar um método similar para pessoas em situação de rua com problemas com drogas em um sítio próximo da capital paulista.

 

Os caminhos da ciência 

A proibição dos psicodélicos, na década de 1970, interrompeu estudos clínicos que na época já apontavam efeitos terapêuticos dessas substâncias. No Brasil, apesar de retrocessos políticos, o cenário é positivo. Com a retomada das pesquisas e a regulamentação da ayahuasca que permite o uso para fins religiosos, novos trabalhos científicos avançam na investigação do potencial dessas substâncias para ajudar a lidar com vícios. 

Em um estudo feito na Unicamp e publicado no “Journal of Psychopharmacology”, o psicólogo Dimitri Daldegan-Bueno identificou que a frequência e a intensidade da experiência mística durante um trabalho com ayahuasca podem aumentar as chances de fazer uma pessoa parar de fumar. Outro estudo pioneiro em andamento, conduzido pelo neurocientista Rafael Guimarães dos Santos, da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto, avalia a eficácia do chá amazônico no tratamento do uso abusivo de álcool. 

Substâncias como o LSD, os cogumelos e a ibogaína também despertam o interesse dos cientistas ao redor do mundo. Em 2014, em um estudo também publicado no “Journal of Psychopharmacology”, a equipe do psiquiatra Dartiu Xavier, da Unifesp, concluiu que a ibogaína pode interromper a dependência de crack e outras formas de vício em 72% dos casos. No Instituto de Psiquiatria da USP, o psiquiatra André Brooking Negrão também conduz estudos que avaliam o potencial da ibogaína para diminuir ou eliminar a fissura.  

Apesar do uso terapêutico da ibogaína não ser proibido nem regulamentado no Brasil, a importação da substância tem autorização da Anvisa e pode ser feita com indicação médica. 

 

Terapia do acolhimento

Um entendimento comum entre aqueles que atendem pessoas em situação vulnerável é o de que os psicodélicos não agem sozinhos. “Mais importante do que a substância é acolher as pessoas sem preconceito. O cuidado é a primeira medicina”, afirma Adriano de Camargo, que, ao lado da companheira Tuca Fontes, fundou o Instituto Nhanderu, em 2018, no centro de São Paulo. Diferente de projetos como o de Walter de Lucca, Camargo realiza cerimônias xamânicas de ayahuasca e rodas de rapé na própria região da cracolândia, o que facilita o acesso dos frequentadores do lugar.

“Qualquer movimento que procura levar os psicodélicos às pessoas que abusam de drogas sem um preparo para acompanhá-las fora da cerimônia está fadado ao fracasso, principalmente pessoas em vulnerabilidade social”, explica Camargo, ele próprio um ex-frequentador da cracolândia, que conseguiu abandonar a dependência e se reconectar com suas origens guaranis por causa do uso de ayahuasca. 

“Depois que consegue acabar com a compulsão e a fissura, a pessoa precisa lidar com uma série de questões como trabalho, moradia, documentação, pendências jurídicas e emocionais. Com o pós-acompanhamento que fazemos, ela começa a reestruturar sua vida. Se a gente se propusesse apenas a servir o chá, estaríamos fadados a um erro, porque o chá vai trazer à tona inúmeras questões que foram responsáveis pela situação de vulnerabilidade da pessoa.”

O trabalho do Instituto Nhanderu mostra que o uso de psicodélicos deve ser aliado a uma estratégia maior de redução de danos. Para o psicólogo Fernando Beserra, um dos fundadores da APB (Associação Psicodélica do Brasil), não existe uma estratégia universal que funcione para todos, por isso é preciso escutar aquele que está sofrendo. 

“Ações que tenham o cunho ideológico proibicionista mantêm fantasias nocivas, que geram mais prejuízo para as pessoas que deveriam receber suporte social e tratamento”, aponta Beserra. “E nunca devemos perder de vista a nossa atenção aos direitos humanos e a necessidade de práticas em liberdade, que estimulem a autonomia do usuário, sua reinserção social e a possibilidade de reimaginar a si e ao mundo.”

Como lembra o psicólogo, internações forçadas nem sempre funcionam, já que a abstinência é uma meta ousada para quem depende de uma substância. “Quando se retira da pessoa um medicamento com alto potencial de dependência, isso é feito aos poucos, com redução das doses e controle nas consultas. Mas parece que quando falamos de substâncias que alteram a consciência, a busca é que isso seja feito de forma imediata”, critica ele. “A abstinência pode ser um ótimo plano, mas não é algo que se deveria impor a todos os usuários como condição de tratamento ou como a única meta a ser alcançada.”

Para Adriano de Camargo, as operações realizadas no centro de São Paulo, além de violentas, são ineficazes. “Isso está dentro de um escopo de higienismo. Querem internar quem está na rua usando crack, mas o problema não é o crack. O problema da cracolândia é a desigualdade, a questão do sistema prisional, já que muitas pessoas ali são egressas, o álcool… As pessoas não têm emprego, não têm onde morar, têm uma série de questões judiciais e mentais”, enumera. “O crack é só a cereja do bolo.”

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