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“Conhecimentos tradicionais precisam ser protegidos”, diz antropóloga

Sem diálogo com indígenas, nova expansão do uso ritual de psicodélicos, como do alucinógeno do sapo Bufo, é uso indevido do saberes tradicionais, afirma a pesquisadora Sandra Lúcia Goulart

Carlos Minuano, para a Psicodelicamente

Foto: Pintura de Limbert Gonzales

Voltou a ganhar destaque na mídia uma substância que tem sido chamada de “veneno do sapo”. Extraída da secreção de um anfíbio da espécie Bufo alvarius (ou Incilius alvarius), a droga contém o composto psicodélico 5-MeO-DMT, que é proibido no Brasil. O fato mais recente é a investigação do suposto uso do alucinógeno, ainda pouco conhecido no país, em um centro holístico em São Paulo. 

Casos como esse, somado ao uso de outras substâncias, como kambô, rapés, além de operações policiais relacionadas à venda de cogumelos mágicos, que contém psilocibina, também proibida no país, reforçam a urgência de um debate mais amplo sobre o uso de psicodélicos no Brasil. É importante considerar os avanços científicos sobre o potencial terapêutico desses compostos, mas sem também olhar para os diferentes atores e subtemas que o assunto envolve – e que são muitos.

Estudos científicos avançam nas asas da renascença psicodélica, uma boa quantidade deles aqui no Brasil. Por outro lado, se observa também o crescimento de um circuito de uso de substâncias ainda não legalizadas no país em contextos rituais pseudo-xamânicos. 

Em sessões e retiros muitas vezes desconectados de usos tradicionais conhecidos, ou que de fato existam, são oferecidos combos de substâncias, que colocam em risco usuários, muitos deles, em busca de tratamentos para condições graves de saúde. 

Também é preciso falar da apropriação de saberes (e de narrativas) indígenas. Pesquisas acumulam evidências sobre os benefícios de plantas usadas há milhares de anos por indígenas, como o chá amazônico ayahuasca, para tratar depressão grave e vícios. Enquanto isso, povos originários, detentores de saberes ancestrais sobre a bebida, permanecem sob ameaças de todos os tipos, lutando por direitos básicos, como território, saúde e sobrevivência. 

Em entrevista à Psicodelicamente, a antropóloga Sandra Lúcia Goulart argumenta que a expansão do uso de psicodélicos em centros urbanos não é uma novidade, mas, segundo ela, é importante entender o fluxo atual de transformações. “Se não tem inclusão, diálogo com aqueles que originalmente têm o conhecimento e o manejo dessas substâncias, para mim há risco sim de se tratar de apropriação de conhecimento tradicional indevida.”

“Esses conhecimentos [tradicionais] são reconhecidos em tratados internacionais como patrimônio da humanidade que devem ser protegidos. Há um problema de violação de direitos muito sério quando eles são transformados em mercadoria”, prossegue a pesquisadora. 

O momento é oportuno também para uma reflexão sobre como a mídia brasileira está tratando o assunto. “Tem sido publicado muitas matérias nas últimas semanas com informações confusas, e a repercussão que tem dado gera mais confusão ainda”, comenta a antropóloga, que há mais de 30 anos se dedica à pesquisa do uso ritual, indígena e religioso de psicodélicos. 

A pesquisadora ressalta que os efeitos e resultados de qualquer psicodélico não se limitam aos territórios da química e das moléculas. “Além de compreender as estruturas farmacológicas desses compostos é importante atentar para os contextos em que essas substâncias são experimentadas”. Leia trechos da entrevista a seguir.

Expansão de uso de psicodélicos deve dialogar com conhecimentos tradicionais, diz antropóloga Sandra Goulart/Reprodução-Instagram

Psicodelicamente – Como você avalia a cobertura que a imprensa está fazendo desse crescimento do uso do alucinógeno do sapo Bufo e de outros psicodélicos em contexto ritual? 

Sandra Goulart – Primeiro, precisamos observar que estamos falando do uso de substâncias diferentes. Tenho visto matérias publicadas nas últimas semanas e também acompanhado a repercussão em redes sociais e observado que, algumas vezes, principalmente no que concerne a repercussão, certas matérias apresentam informações misturadas, pouco contextualizadas e curtas demais. Isso acaba gerando um mal entendimento de alguns pontos que são importantes. 

P – Sobre o caso do bufo quais confusões você observou?

S G – É importante distinguir quando a gente fala do Bufo, que é uma secreção extraída de uma espécie de sapo, que é o Bufo alvarius (ou Incilius alvarius), nativo da região do deserto do Sonora, e de outras partes do México, e nos Estados Unidos, do Arizona e da Califórnia, principalmente. Entre as substâncias que podem ser secretadas pela pele dele estão, por exemplo, a 5-MeO-DMT e a bufotenina. São tipos diferentes de triptaminas, classificadas com o psicodélicos clássicos. Existe outra espécie anfíbia, o kambô (Phyllomedusa bicolor), uma rã amazônica, da qual se extrai um veneno (que não causa efeitos psicodélicos), que é totalmente diferente do Bufo. É importante esclarecer que as substâncias presentes no kambô não são classificadas como psicodélicas. Tem sido publicado muitas matérias nas últimas semanas com informações imprecisas, e a repercussão que tem dado gera mais confusão ainda.

P – E como você avalia o crescimento do uso de outras substâncias, como rapé, sananga, nem sempre alinhados com o uso tradicional?  

S G – No caso do rapé, existem tipos diversos, a partir de tabaco, (Nicotiana tabacum), de anadenanthera, espécies vegetais que tem DMT, você também cita a sananga, são várias substâncias diferentes, é importante ter isso em mente. Sobre a questão da expansão delas, minha preocupação central é se envolve uma disseminação de seus usos originais para outros contextos diversos e se esse crescimento implicaria numa apropriação indevida de conhecimentos tradicionais. 

P – A partir dessa perspectiva, o que parece mais preocupante?

S G – As questões que me preocupam e preocupam outros especialistas estudiosos de diversas áreas, e com os quais eu me sinto alinhada, tem a ver com questões ambientais, de impactos ecológicos sobre diversas espécies vegetais, fungos e outras espécies animais. Esse é um primeiro ponto, há um outro, também muito importante, que se refere aos direitos de populações indígenas ou tradicionais sobre os seus conhecimentos ancestrais e históricos, de longa data, relativos a espécies vegetais, fungos, e animais.

P – Então, essa expansão pode ser uma ameaça aos conhecimentos indígenas associados a recursos de biodiversidade e genéticos?

S G – Esse é um ponto muito importante e que já foi debatido e assegurado, inclusive em tratados internacionais estabelecidos desde os anos de 1990 até a atualidade, e dos quais o Brasil é signatário, como a Convenção da Biodiversidade e o Tratado de Nagoya, que é de 2010. Inclusive são regulados no contexto nacional pela Lei da Biodiversidade, que é de 2015, considerando e aplicando os pontos dos tratados internacionais, mas no contexto brasileiro. Esses dois pontos de preocupações valem tanto para a expansão do uso da secreção do Bufo quanto do kambô.

P – No caso do Bufo, tem ainda a questão de ser uma substância proibida, certo?

S G – No caso do bufo sim, as substâncias são consideradas psicodélicas, contém triptaminas, que constam na lista 1 da Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas das Nações Unidas. Então, são substâncias proscritas. No caso do kambô não são substâncias psicodélicas, mas em ambos os casos, temos uma preocupação com a preservação e conservação das espécies. 

P – Pode falar um pouco mais sobre o kambô?

S G – Falando especificamente sobre o kambô, a expansão das aplicações começa por volta dos anos 1990, e depois ao longo dos anos 2000 atinge uma proporção maior. É importante que se diga que no contexto indígena o uso da secreção da rã é feito em pequena escala e a partir de todo um conjunto de conhecimentos que está ligado a uma cosmologia, que envolve um tipo de relacionamento com o meio ambiente com a natureza, com as outras espécies, de animais e vegetais, a partir de um manejo sustentável, que não apresenta os problemas que uma expansão do uso da secreção dessa rã começa a ter. 

P- Houve alguma reação dos povos indígenas em relação ao crescimento do uso do kambô?

S G – Quando isso começa a acontecer, no início dos anos 2000, o povo katukina entra com uma solicitação, se não me engano em 2003, junto ao Ministério do Meio Ambiente pedindo proteção ao seu conhecimento tradicional. Essa solicitação teve uma repercussão, tanto que em 2004 a Anvisa proibiu, não o uso, mas a divulgação excessiva que estava sendo feita em vários sites, redes, da aplicação do kambô. E além disso, após esses acontecimentos foi criado, aqui no Brasil um projeto de pesquisas científicas sobre o uso do kambô em diferentes áreas, como biologia, antropologia e com a participação de indígenas de várias etnias, como os katukina, por exemplo, que são detentores desse conhecimento. Esse tipo de iniciativa é extremamente salutar e bem-vinda.

P – Em quais condições essa expansão do uso de psicodélicos pode ocorrer de forma mais segura?

S G – Eu penso que o problema não é a expansão, não é a disseminação, não é o novo, não é a invenção, porque na verdade as sociedades, os modos de vidas, as culturas envolvem transformações, invenções. Não teríamos civilizações, sociedades extremamente complexas se não fossem as invenções. Quando a gente pensa no próprio caso da ayahuasca, por exemplo, que aqui no Brasil é mais conhecida, essa discussão envolveu muita troca, muito diálogo, em toda a região amazônica ou em boa parte dela entre indígenas e outras populações mestiças ribeirinhas, que migraram para lá. Então, o problema não são as trocas, eu acho que a questão principal é a solidez dessas invenções, dessas transformações e expansões. 

P- Você acredita que o caso da ayahuasca seja um bom exemplo para a expansão de outros psicodélicos?

S G – O processo que levou à regulação do uso no país envolveu uma série de diálogos, entre diferentes tipos de pessoas, de sujeitos envolvidos com a bebida nas religiões sincréticas que fazem uso cerimonial dessa bebida, pesquisadores de diferentes áreas das ciências humanas e da biomedicina, representantes de órgãos governamentais, e mais recentemente indígenas também começaram a se interessar cada vez mais em participar de debates públicos sobre a regulação da ayahuasca e pesquisas. O último documento que foi efetivado sobre a bebida no Brasil que regula o uso é de 2010. Nesse documento se considera que a ayahuasca é uma manifestação cultural ancestral da sociedade brasileira, uma expressão cultural considerada indissociável da identidade das populações tradicionais da Amazônia e por isso deve ser protegida pelo Estado brasileiro. Acho que esse caso da ayahuasca deveria nos inspirar para pensar o processo de expansão de outras substâncias.

P – Não parece ser o que está acontecendo com o bufo e kambô…

S G – Em relação ao bufo, é preciso verificar como é que está se dando a obtenção dessa secreção e transporte para o Brasil, e o quanto a expansão do uso dessas secreções de diferentes espécies de anfíbios afeta a continuidade e a conservação delas. No caso do kambô, quando o uso começou a se dar de um modo acelerado, se observou em certas regiões do Acre, por exemplo, pessoas com criações de rã, porque isso estava gerando lucro. Ou seja, é uma transformação de um uso tradicional em pequena escala sem danos abusivos da espécie animal, sem o impacto ao ecossistema, para uma outra situação, de consumo em larga escala, que envolve a transformação de uma substância de uma espécie animal, em mercadoria, numa comercialização. É um outro contexto, muito complicado, que envolve uma série de problemas gravíssimos, éticos, de impactos ambientais, ecológico, e de desrespeito aos usos tradicionais.

P – Quais medidas podem ser tomadas para proteger conhecimentos tradicionais nesse processo de expansão do uso dessas diversas substâncias?

S G – O mais relevante é nos atermos aos processos que regem essas expansões, se envolvem uma relação equitativa, se os benefícios advindos da expansão do uso dessas substâncias vão beneficiar igualmente diferentes agentes envolvidos com os conhecimentos sobre essa substâncias. Temos que observar os riscos com relação às violações de direitos de populações indígenas e tradicionais sobre seus conhecimentos associados à biodiversidade. Lembrando que já temos tratados internacionais que regulam esses direitos. E aqui no Brasil, temos também iniciativas importantes que visam incluir representantes de grupos indígenas nas pesquisas que estão sendo feitas com substâncias, já há centros de pesquisas geridos por associações indígenas e propostas desses povos de rastreamento e identificação de grupos que fazem uso de determinadas substâncias. Já existem representações indígenas, por exemplo, em conselhos de gestão genética. Esses são processos muito mais democráticos, inclusivos, e que podem, no meu entendimento, gerar movimentos de expansão de uso dessas substâncias sem malefícios.

*A ilustração que abre a entrevista é do artista peruano Limbert Gonzales, discípulo de Pablo Amaringo, precursor da pintura visionária inspirada nas cerimônias de ayahuasca em contextos tradicionais da Amazônia peruana. A reprodução foi autorizada pelo pintor. 

Carlos Minuano

Jornalista e escritor, há mais de duas décadas escreve sobre psicodélicos nos principais veículos jornalísticos do país, como nas revistas CartaCapital, Rolling Stone, jornal Metro. É colaborador do portal UOL desde 2012. Além de dirigir a Psicodelicamente, atualmente trabalha na pesquisa para um livro sobre psicodélicos, que será publicado pela editora Elefante. É autor de duas biografias, “Tons de Clô” (do estilista Clodovil Hernandes) em adaptação para uma série de streaming, e “Raul por trás das canções” (do músico Raul Seixas), ambas publicadas pelo grupo editorial Record.

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