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“Cannabis não é medicina alternativa”, diz médico que trata Parkinson com a planta

“Cannabis não é medicina alternativa, remédio alopático que é”, afirma o neurocirurgião Pedro Pierro, um dos primeiros prescritores de cannabis medicinal do Brasil. O médico participou no último mês de agosto da primeira Conferência Internacional da Cannabis Medicinal, em São Paulo, onde falou sobre o uso dos canabinoides na doença de Parkinson. Em entrevista à Psicodelicamente, Pierro ressalta que há registro de uso da planta há mais de 12 mil anos e descrição de utilização terapêutica há 5 mil, e que o tabu por causa de seus efeitos psicoativos ainda atrapalha a difusão do uso médico da substância.

Caroline Apple, para a Psicodelicamente

Foto: Arquivo Carmen's Medicinals

“O que surgiu há pouco mais de 100 anos como uma alternativa aos remédios extraídos da natureza se tornou convencional, e os naturais se tornaram alternativos. Isso inclui a terapia com a cannabis medicinal”, observa o neurocirurgião Pedro Pierro em entrevista à Psicodelicamente. Ele chama a atenção para a relação da humanidade com os medicamentos, que mudou muito se comparado com um passado não tão distante.

Pierro, um dos primeiros prescritores de cannabis medicinal do Brasil, participou no último mês de agosto da primeira Conferência Internacional da Cannabis Medicinal, em São Paulo, onde falou sobre o uso dos canabinoides na doença de Parkinson, sua especialidade.

Ele lembra que há tempos o ser humano busca na natureza formas de lidar com suas enfermidades. As medicações disponíveis eram fruto da extração de matéria-prima natural, como é o caso, por exemplo, do ópio e da morfina, amplamente utilizados pela medicina. Isso significa que tudo o que era dado a uma pessoa doente era possível de ser encontrado na natureza. Pierro destaca ainda que há registros de uso terapêutico de cannabis há mais de 5 mil anos.

Porém, em 1897, a Bayer, gigante da indústria farmacêutica, sintetizou o primeiro fármaco da história, o ácido acetilsalicílico, a famosa AAS ou aspirina, usada para tratar febre, dor e inflamações, o primeiro remédio não extraído de algo natural. E a partir daí nada mais foi como antes.

Neste contexto, Pierro propõe uma reflexão sobre qual medicina é realmente alternativa. E por que, segundo ele, a cannabis não deveria ser vista como segunda opção, que é como a regulamentação brasileira vê o tratamento com a planta atualmente, indicada quando drogas ‘convencionais’ não surtiram efeito.

“Cannabis não é medicina alternativa, remédio alopático que é”, ressalta. “O que não encontraram na natureza como gostariam, fazem em laboratório, e aí chamam a cannabis de medicina alternativa”. “É uma inversão que inviabilizou anos de estudo com substâncias como os canabinoides, isso sem considerar o tabu que envolve a planta por causa dos seus efeitos psicoativos”, afirma o neurocirurgião.

Arquivo pessoal

Cannabis interna

O médico explica que as pessoas produzem cannabis dentro de seu organismo por meio do sistema endocanabinoide, descoberto na década de 1990. Sim, são substâncias produzidas pelo próprio corpo, muito semelhantes à erva, que se ligam a receptores do sistema nervoso causando efeitos sobre funções como memória, apetite, estresse e muitos outros.

Um dos mais famosos endocanabinoides é a anandamida, conhecida como “substância da felicidade”. De acordo com o neurocirurgião, além de suas funções de regulação, quando associado com a ingestão de fitocanabinoides, ela pode colaborar com o tratamento de patologias diversas, justamente porque não trata algo específico, e sim atua onde há alguma disfunção.

É o caso do Parkinson, doença caracterizada pela perda progressiva de neurônios que produzem o neurotransmissor dopamina. Pacientes podem ser tratados com a cannabis por causa das suas propriedades neuroprotetoras e de neurogênese e porque também atua nos sintomas inerentes à patologia. E tudo isso está ligado ao funcionamento do sistema endocanabinoide, garante o médico.

Pierro é especialista no tratamento de parkinsonianos e usa a cannabis como medicamento para tratar seus pacientes. Mas acompanha bem de perto cada um. Isso porque a substância age de forma diferente em cada organismo. E isso é bom, diz ele.

O cuidado mais próximo que a terapia canábica demanda está mudando a relação médico-paciente, para melhor. “É preciso acompanhar de uma forma acolhedora e integrativa a pessoa em tratamento com os medicamentos à base de cannabis e esse cuidado se estende, muitas vezes, até mesmo à família de quem está em tratamento.”

O especialista comenta que muitos profissionais da saúde abrem mão desse olhar humanizado do paciente, tornando consultórios lugares pouco acolhedores onde muitas vezes a prescrição se torna mais importante que o paciente. “Com a cannabis, a coisa muda de figura. Ela é um convite a uma nova forma de olhar o paciente e suas necessidades individuais.”

Para oferecer a terapia canabinoide é preciso regular a dosagem com certa frequência, verificar os efeitos colaterais que podem surgir a qualquer momento, analisar os benefícios que estão sendo vividos pelo paciente e tratar junto qualquer outra doença que possa surgir junto com o Parkinson e piorar o quadro da patologia, tudo isso sem abrir mão das terapias convencionais, afinal não é uma competição.

No caso do Parkinson de predomínio rígido, uma variação da doença que responde mal a qualquer tipo de tratamento, a cannabis pode aliviar os sintomas da doença, mas principalmente melhorar a qualidade de vida, detalha Pierro

“Tem gente que acha que o tremor é o sintoma que mais interfere na vida de um parkinsoniano, mas pode não ser. Esse paciente pode sofrer com questões mentais e físicas, que nem sempre estão ligadas ao processo de degeneração da doença, mas que podem deteriorar a saúde dele no geral, como é o caso de problemas para dormir, dores e depressão. E tudo isso a cannabis pode tratar, melhorando a qualidade de vida dessa pessoa e ajudando a desacelerar a evolução da doença”, conta o neurocirurgião.

Revolução verde

Uma dúvida que ainda paira sobre o tratamento com cannabis medicinal para Parkinson é sobre quais canabinoides são mais indicados. Segundo Pierro, não existe um consenso sobre isso, embora ele afirme que os óleos ricos em THC são a preferência dos especialistas na hora de tratar a doença.

A explicação por trás disso revela outro ponto positivo, afirma Pierro. A ciência tem avançando a passos largos na direção de novas formas de tratar o Parkinson com os canabinoides. Ou seja, é preciso um olhar holístico para escolher a melhor opção de óleo à base de cannabis de acordo com a necessidade do paciente.

“Sabemos que o CBD [canabidiol] pode ajudar na regulação do humor e melhorar a qualidade do sono e que o THC age sobre a dor e sobre a depressão, mas também usamos o CBN [canabinol] e, agora, com os estudos mais recentes, o CBG [canabigerol], que tem efeito sobre a espasticidade”, diz o médico.

Oferecer a terapia canaboinoide exige atualização constante, mas Pierro deixa claro que não há dúvidas sobre a melhora da qualidade de vida do paciente. Outra vantagem é que a planta também reduz o tempo de uso de medicamentos alopáticos importantes no tratamento de Parkinson, mas que promovem efeitos colaterais graves em longo prazo.

“O melhor medicamento para o tratamento do Parkinson é a Levodopa, que em algum momento o paciente terá que usar, mas no decorrer da doença é necessário aumentar e em algum momento ela irá provocar sintomas motores tão limitantes quanto a própria doença”, pontua Pierro.

Ele afirma, entretanto, que com o uso da cannabis os aumentos das medicações alopáticas são mais lentos. “E em muitos casos conseguimos adiar o início da levodopa.”

O que os profissionais de diversas áreas que fazem parte da ‘revolução verde’ concordam é que a cannabis veio para andar lado a lado com a medicina “convencional” e não deve ser tratada como última opção, uma vez que a saúde do paciente pode se deteriorar demais nesse processo, defende Pierro.

“Se temos uma forma de potencializar os tratamentos e melhorar a qualidade de vida dos pacientes, não faz sentido nenhum os medicamentos à base da planta serem a segunda ou terceira opção. Os efeitos terapêuticos da cannabis são uma realidade que acompanho todos os dias no meu consultório como neurocirurgião, e não é uma medicina alternativa”, reitera.

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