Revista digital de jornalismo psicodélico

Search

Ayahuasca e as visões de mundo do diretor do aclamado ‘Noites Alienígenas’

Todo o trabalho de Sérgio de Carvalho passa pela bebida psicodélica amazônica ayahuasca. Para o cineasta, que nasceu no interior de São Paulo e se mudou para Rio Branco, o teor onírico e as mirações da beberagem são como um filme. Saindo da esfera mental, já materializou curtas-metragens que resgatam a cultura indígena da Amazônia. E no longa “Noites Alienígenas”, consagrado como o melhor filme de 2022 no Festival de Gramado, além de premiado em outras quatro categorias, ele retrata as fronteiras entre cidade e floresta, com referências sutis ao chá. Em entrevista à Psicodelicamente, o diretor conta como a ayahuasca é central em sua vida. “Curou meu espírito e é responsável pela maneira como eu vejo o mundo”.

Foto: Divulgação

O filme “Noites Alienígenas”, do diretor Sérgio de Carvalho, foi o grande vencedor  da 50ª edição do Festival de Gramado, de 2022. Na premiação, uma das mais importantes do cinema nacional, o longa, primeira obra acreana exibida no evento, levou cinco Kikitos — incluindo melhor filme, melhor ator, melhor atriz coadjuvante, melhor ator coadjuvante e uma menção honrosa.

A história é baseada no livro homônimo do diretor, lançado em 2012. Mas, para o longa, o enredo ganhou uma atualização, diante da mudança social vivida no Acre, com o crescimento da criminalidade, depois da chegada de facções criminosas que invadiram a região, impactando a vida de muitos jovens, entre eles, os indígenas.

Essa é a sinopse que você vai ler por aí ao pesquisar sobre o filme, mas ela não passa de pano de fundo para uma apologia à ancestralidade e à identidade do povo acreano, intimamente ligadas à floresta e todo seu universo tradicional, que perpassa pela cultura ayahuasqueira.

Na obra, a bebida amazônica psicodélica aparece como uma referência sutil, mas, em entrevista à Psicodelicamente, Sérgio conta como seu trabalho é influenciado pela ayahuasca e por todo universo que se apresentou a ele a partir do uso do chá.

“Sou do interior de São Paulo e lá tive experiências espirituais com cogumelos [psicodélicos], eu já tinha uma busca pela psicodelia e pela transcendência. Quando li toda a obra do [Carlos] Castañeda tudo isso se intensificou, até que conheci a ayahuasca”, relembra.

Um chamado para a “Meca” ayahuasqueira

Aos 19 anos, Sérgio se mudou para o Rio de Janeiro para fazer faculdade de cinema. Lá, segundo ele, conheceu um amigo que tinha um pai daimista “das antigas”. Assim, teve a oportunidade de conhecer a medicina tradicional indígena por meio da doutrina do Santo Daime. “O trabalho foi maravilhoso. Até hoje não encontro palavras para descrever. Mas o formato, com muitos dogmas, não era ainda o que eu buscava. Acho que sou um pouco indisciplinado [risos].”

A busca por um espaço para tomar o chá não durou muito. Sérgio logo conheceu o centro universalista Arca da Montanha Azul, com grupos de estudos na linha junguiana, integrantes de diversas linhas espiritualistas e trabalhos de desenvolvimento mediúnico. E foi bem rápido até o universo ayahuasqueiro começar a refletir no seu trabalho.

Ainda na faculdade, o então estudante fez o primeiro curta-metragem, que trazia uma temática muito presente na jornada de quem tem contato com a ayahuasca: morte e renascimento. “Era uma metáfora de um trabalho espiritual. E, desde então, todo meu trabalho passa pela ayahuasca. O teor ‘onírico’ e as mirações me remetem ao cinema”, explica.

Ainda no Rio de Janeiro, já para terminar a faculdade, Sérgio recebeu um “chamado da floresta”. Mas não foi nada místico. A convite de uma amiga, o diretor embarcou para o Acre como filmmaker. A ideia era acompanhar a atriz Lucélia Santos em dois eventos no Norte do país: um em Porto Velho (RO) e o outro em Rio Branco (AC). A atriz, que na época era daimista, sempre muito engajada nas causas socioambientais, indígenas e dos seringueiros, colocou Sérgio “sem querer” no meio da efervescência cultural que o Acre vivia nos anos 2000.

“Era uma explosão de coisas acontecendo. O estado vivia um momento político e cultural muito grande. Foi o período em que começaram os grandes festivais indígenas. E, assim, tive a oportunidade de me aproximar desses povos, como os Huni Kuin e os Ashaninka, e também as igrejas do Santo Daime e outras religiões ayahuasqueiras, como a Barquinha. Fui arrebatado por essa força cultural e espiritual”, recorda.

Os trabalhos terminaram e o então jovem filmmaker precisou retornar ao Rio de Janeiro. De uma forma diferente, a espiritualidade se manteve. Na época, Sérgio foi trabalhar na produção de um filme do Padre Marcelo, mas ele já havia sido mordido pela “jiboia sagrada” — animal que é conhecido como o espírito da ayahuasca pelos povos da região.

“Caí em depressão. Só pensava no Acre. Foi quando um amigo indígena, o Benki Ashaninka, me ligou me convidando para voltar para gravar denúncias contra madeireiros em terras indígenas. Mesmo recém-formado e cheio de dúvidas, eu fui. O ano era 2004, e moro em Rio Branco até hoje.”

Divulgação

Medicina, trabalho social e (re) conexão

Sérgio se jogou de cabeça nas produções de vídeos institucionais para organizações não governamentais, permitindo que ele fizesse uma imersão acreana, ficando mais próximo dos povos da floresta, e participando de muitos rituais e cerimônias Assim, um “outro Acre” começou a se apresentar. “Foi nessas andanças que comecei a conhecer um lado obscuro do estado, principalmente de Rio Branco, com a chegada do crack, da pasta base da cocaína, além de perceber certa negação das questões voltadas à floresta”, explica.

Foi assim que essa temática entrou no radar do cineasta. A jornada para dentro do estado — e dentro de si próprio — inspirou Sérgio a fazer um segundo curta-metragem. Desta vez, a temática da ayahuasca não estava nas entrelinhas como na primeira produção feita pelo jovem universitário. Agora, o chá era o tema.

O curta-metragem “Awara Nane Putane: Uma História do Cipó” é uma animação que conta uma das lendas indígenas de criação da ayahuasca, pela visão do povo Yawanawa, que vive às margens do rio Gregório. A obra circulou por muitos festivais, inclusive internacionais.

Desde então, o cineasta não parou mais. Em 2012, desenvolveu o “Festival Pachamama: Cinema Sem Fronteiras”, voltado para a exibição de filmes latinoamericanos, mas com um olhar cuidadoso para os temas sensíveis em sua caminhada. “O festival não é temático, mas sempre tem espaço para a espiritualidade e os povos indígenas. Tivemos, por exemplo, a ‘Mostra Miração’, que trazia filmes com temas relacionados à ayahuasca e a outras plantas de poder”, conta.

Neste meio tempo, Sérgio gravou a série “Nokun Txai: Nossos Txais”, disponível na Amazon Prime Brasil, que traz diversas questões sobre os povos indígenas acreanos. ‘Txai’ é uma palavra indígena em Hãtxa Kuĩ, do povo Kaxinawá (também conhecido como Huni Kuin), que significa, no geral, “amigo”. A palavra se popularizou ao se tornar nome de uma canção de Milton Nascimento.

Outra série também produzida pelo diretor é a “Olhar Que Vem de Dentro”, disponível no mesmo streaming, que fala sobre religiões a partir do ponto de vista das crianças, entre elas uma indígena e uma daimista.

Mesmo conectado com os assuntos relacionados à ayahuasca, o cineasta passou os últimos anos “devagar”. De 2017 a 2020, Sérgio assumiu a presidência da Fundação Municipal de Cultura, Esporte e Lazer Garibaldi Brasil, em Rio Branco. Para dar conta das funções do cargo, Carvalho contou que deixou a vida espiritual de lado. “Estava tomando ayahuasca no máximo duas vezes por ano. Mas no ano passado eu retomei minha caminhada nas medicinas e minha vida espiritual.”

Foi também durante essa retomada que o cineasta fechou a edição do aclamado “Noites Alienígenas”, que traz em sua narrativa códigos que só quem pertence à comunidade ayahuasqueira sabe identificar, como a cena que mostra a foto do padrinho Sebastião Mota de Melo, um dos principais personagens da história do Santo Daime, e a jiboia, que representa a espiritualidade.

“Trago no final do filme um reencontro dos personagens com a ancestralidade da floresta. A ayahuasca curou meu espírito e é responsável pela maneira como eu vejo o mundo. Foi a partir dela que eu pude conhecer pessoas incríveis e, principalmente, criar uma relação com os povos indígenas”, conta o cineasta. “A cultura ayahuasqueira faz parte de mim, portanto, não poderia ser diferente.”

Comentários

2 respostas

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Relacionados

apoio

parceiros

A revista Psicodelicamente é uma publicação da Tucunacá Edições e Produções LTDA.