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Aos 80, ‘rainha dos psicodélicos’ luta contra proibicionismo

Amanda Feilding, que há mais de meio século busca elevar o nível do debate sobre drogas no mundo, iluminou evento nos EUA

Flávia Feitosa, de Denver, Colorado (EUA), para a Psicodelicamente

Foto: Reprodução

Uma das mais emocionantes presenças no Psychedelic Science 2023 foi a de Amanda Feilding, 80. Considerada a ‘rainha inglesa dos psicodélicos’, a respeitada investigadora dos estados alterados de consciência segue por estradas lisérgicas desde 1965, quando experimentou LSD pela primeira vez. 

Feilding, para quem não conhece, é a condessa de Wemyss e March (título adquirido em 1995 ao casar-se com James Charteris, lorde Neidpath), Há mais de meio século, ao lado de cientistas de alto calibre, ela luta contra o proibicionsimo e busca incansavelmente elevar o nível do debate sobre drogas no mundo. 

Para isso, em 1998, ela fundou a Foundation to Further Consciousness, que mais tarde foi rebatizada como Beckley Foundation. A ONG dirige e apoia pesquisas neurocientíficas e clínicas sobre os efeitos de substâncias psicoativas no cérebro e na cognição. 

Sua presença no congresso organizado pela Maps (Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos), em Denver, no Colorado (EUA) no último mês de junho, foi marcada por palestras e conversas que emocionaram os participantes do evento que teve um número recorde de público: 12 mil inscritos, quatro vezes o da da conferência anterior realizada em 2017

A condessa de Wemyss encantou o plateia com um painel, cujo título sintetiza sua caminhada:  “A Life of Science and Dreams: The Dawn of the Psychedelic Age” (Uma vida de ciência e sonhos: o alvorecer da era psicodélica). 

Em seguida, dividiu o palco para uma conversa com Rick Doblin, fundador da Maps, sobre o momento histórico no campo dos alucinógenos, em que MDMA e psilocibina avançam no caminho da legalidade nos EUA. Ela também falou das controvérsias que viveu ao longo de sua jornada de dedicação aos estudos sobre os psicodélicos. 

Posteriormente, foram incluídos na conversa seus filhos Cosmo e Rock, que contaram a um público atento sobre como foi crescer com a “rainha dos psicodélicos”. E também de como eles acharam seus próprios caminhos neste campo e de suas esperanças e visões para o futuro da renascença psicodélica. Ambos estão envolvidos nos projetos de Feilding.

Flávia Feitosa e Amanda Feilding no Psychedelic Science 2023/Arquivo pessoal

Animal supersônico

Autora de mais de 50 artigos científicos sobre os efeitos da cannabis e dos psicodélicos, Feilding circulou pelos corredores, tirou fotos com todos, sempre simpática, sorridente e disponível. 

Sua fala inicial foi acompanhada de uma slideshow com obras de artes, fotos de natureza e neuroimagens, todas minuciosamente coordenadas com suas falas.

Feilding explicou uma teoria que defende há décadas, sobre o Homo sapiens, e de como a adoção da posição vertical foi fundamental para o domínio sobre todos os outros animais. 

Segundo ela, uma consequência da redução do volume de sangue no cérebro, pela gravidade e pelo seu fechamento na fase adulta, e do desenvolvimento da linguagem como uma complexa estrutura semântica que gerou condicionamentos e comandos.

“Toda a realidade de uma pessoa tornou-se dependente do significado da palavra a que foi condicionado e, portanto, como espécie, cada vez mais separada da natureza”, disse Feilding. 

Assim, a construção do que chamamos de uma rede neural padrão gerou esse animal supersônico que somos, mas que com o passar do tempo nos distanciamos cada vez mais das origens. 

Feilding citou como exemplo o comportamento de uma criança, que demonstra mais interesse pelo que é novo, enquanto o de um adulto fica mais focado em seguir o que já está definido. 

Uma outra pesquisa, também apresentada no congresso da Maps em Denver, corrobora com essa visão, ao mesmo tempo que avança nas comprovações dos efeitos dos psicodélicos. 

O estudo com camundongos da neurocientista Gül Dölen, do Centro de Pesquisa Psicodélica e da Consciência da Universidade Johns Hopkins, mostrou que sob o efeito de LSD eles retroagem e passam a preferir novidades.

Apresentação de Amanda Feilding no congresso em Denver/Foto: Flávia Feitosa

Sangue no cérebro

A economia de sangue no cérebro humano é, segundo Feilding, um problema para a nossa sociedade. A nossa fertilidade como sociedade estaria associada à irrigação sanguínea nele.

A condessa de Wemyss fez de si mesma um laboratório para as suas pesquisas, suas experiências com estados alterados de consciência foram um impulso para testar suas hipóteses. Segundo ela própria afirmou várias vezes em entrevistas, as drogas lhe colocaram no caminho certo. 

Mas foi nas neuroimagens que encontrou um caminho de investigação para comprovar suas teorias. Usando placebo e LSD e comparando as imagens cerebrais que confirmou o efeito dos psicodélicos na irrigação do cérebro.

Para ela, a forma como fornecemos energia vital ao nosso cérebro é uma área da ciência que tem sido estranhamente negligenciada. “Os místicos, os saddhus e os xamãs de todas as gerações têm se concentrado em técnicas que alteram e a consciência aumentando o suprimento de energia para o cérebro.” 

Os modos de fazer isso, prossegue Feilding, podem variar entre jejum, respiração, dança ou ingestão de compostos psicoativos. “O ser humano sempre buscou a alteração de seu estado de consciência e assim desenvolveu nossa cultura extraordinária.”

Sobre a trajetória na pesquisa e nas políticas globais de drogas, ela falou das atividades a que se dedica atualmente. Seus estudos atuais buscam mapear efeitos psicodélicos no cérebro por meio de neuroimagens. 

Suas pesquisas atuais também investigam a hipótese de que um mecanismo chave subjacente do efeito desses compostos é aumentar o volume de sangue nos capilares do cérebro, fornecendo a ele mais energia. Outro objetivo de Fielding é demonstrar o potencial dos psicodélicos para melhorar a vida humana em diferentes níveis. 

Suas pesquisas são realizadas em colaboração com várias universidades no mundo, e envolvem investigações com micro e macro doses. Uma delas é a Microdosing and Meditation Study da Beckley Foundation que segue com chamada aberta. 

Os participantes devem ser maiores de idade, fluentes em inglês, que tenham acesso a um aparelho de celular e que meditem pelo menos três vezes por semana. Os voluntários podem estar tomando microdose ou não, mulheres grávidas, amamentando ou que pretendem engravidar, não podem participar. 

O químico suíço Albert Hofmann, criador do LSD, e Amanda Feilding/Reprodução

LSD e Alzheimer

Feilding encerrou sua apresentação em Denver falando sobre sua jornada de estudos com LSD e a doença de Alzheimer, motivada pela experiência transformadora de uma paciente de 97 anos.

“Minha determinação para fazer este estudo foi provocada pela transformação que o LSD gerou em uma senhora idosa maravilhosa de 97 anos, que, na ausência de seu amado filho, que era seu cuidador, caiu em uma profunda apatia, quase vegetativa, tão profunda que ela não poderia reconhecê-lo em seu retorno de uma semana fora.

Com a aprovação do filho, ela ingeriu uma microdose de LSD, e dentro de um hora ela voltou a ser uma brilhante senhora novamente, com todo o seu senso de “eu” restaurado, sua inteligência e amor pela vida em pleno fogo”, relatou Feilding. 

Ficou claro em sua passagem pelo congresso em Denver que Feilding segue firme em seu propósito de promover estudos sobre os psicodélicos para conduzi-los a um outro nível em nossa sociedade, onde não sejam mais marginalizados. 

Dentro dessa perspectiva, um dos desafios atuais da Beckley Foundation, a cargo de seus filhos, é transformá-la em uma empresa farmacêutica lucrativa. Um tema, aliás, que gera polêmica. O embate entre ciência e mercado pautou várias discussões na conferência da Maps. 

De fato, não deixa de ser desafiador pensar no potencial dos psicodélicos em comparação com as consequências indesejáveis do abuso das mesmas. Será que estamos em busca de mais um remédio para nos anestesiarmos ou de algo que nos ajude a transformar nossa relação com a vida e a natureza?

Flávia Feitosa

Flávia Feitosa é doutora pela USP (Universidade de São Paulo) e mestre em psicologia social pela London School of Economics and Political Science, graduada em psicologia pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e especialista em processos grupais e em gestão educacional. É professora na ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing), na FGV (Fundação Getúlio Vargas) e na Casa do Saber. Atuou por duas décadas como executiva em multinacionais e no mercado educacional brasileiro. Está em processo de formação em PAP (Psicoterapia Assistida por Psicodélicos) pelo Instituto Phaneros e atua como psicóloga, psicoterapeuta e consultora focada em desenvolvimento de pessoas, líderes e times. É colaboradora e consultora científica da Psicodelicamente.

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