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O infortúnio da “psicodelia de direita”

Em uma carta anônima, membros da UDV (União do Vegetal) — uma das principais religiões ayahuasqueiras do Brasil — demonstram sua insatisfação com o apoio explícito de mestres, como são chamados os dirigentes, da alta hierarquia da instituição à política negacionista e antidemocrática do governo Bolsonaro, alegando que essas práticas em nada se assemelham com os ensinamentos do mestre Gabriel, criador do culto, que é apartidário. Manifestações ultraconservadoras de lideranças do grupo não são novidade, mas passaram a ganhar notoriedade pública com a intensificação da polarização política no país.

Nathan Fernandes, para a Psicodelicamente

Foto: Bento Viana

Existe um mito de que pessoas que bebem o chá de ayahuasca, bebida psicodélica de origem amazônica, têm propensão maior a terem uma mentalidade progressista, livre de preconceitos de raça, classe e gênero, sendo mais conectadas com a defesa de pautas ambientais e dos direitos humanos. Mas declarações alinhadas ao discurso do presidente Jair Bolsonaro (PL) feitas por membros graduados da UDV (Centro Espírita Beneficente União do Vegetal) — uma das principais religiões ayahuasqueiras do Brasil, ao lado do Santo Daime e da Barquinha — derrubam essa ideia.

Preocupados com a imagem e os rumos da instituição, em um momento de intensa polarização política, integrantes da UDV decidiram expor sua insatisfação contra essas declarações ultraconservadoras, através de uma carta dirigida ao mestre geral representante José Carlos Garcia, autoridade máxima da instituição.

No documento anônimo, os representantes de diferentes graus hierárquicos, afirmam que “a forma como alguns assuntos estão sendo abordados, no discurso e na prática, pelo atual governo, não traduzem simplesmente uma visão política, mas ferem a dignidade humana e, por isso, não se alinham ao objetivo central da União do Vegetal, trazido pelo mestre [Gabriel, criador do culto], de fazer uma paz no mundo”.

Para os representantes, apesar do mestre geral reforçar um assertivo posicionamento apartidário, “a manifestação de pessoas da direção, especialmente de mestres da alta hierarquia, em redes sociais, sessão ou grande mídia, em defesa das diretrizes do atual governo está sujeito a resvalar na instituição”, pontuando que “temos todos o nosso livre-arbítrio, mas, como ensina o mestre [Gabriel], temos responsabilidade pelos lugares que ocupamos”.

Sem se identificar, um dos criadores da carta afirmou à Psicodelicamente que o estopim para a formulação da missiva foram as declarações de mestres como o médico negacionista Edson Saraiva e do advogado Luís Felipe Belmonte, que já ocupou o cargo de mestre geral representante da UDV.

Em 2021, Belmonte chegou a ser reconhecido como um dos articuladores mais entusiasmados para a criação do Aliança pelo Brasil, partido político com pretensão de abrigar o presidente Jair Bolsonaro nas eleições de 2022. Os planos, no entanto, foram frustrados porque o número de assinaturas não chegou à quantidade mínima exigida pelo Tribunal Superior Eleitoral para oficializar o registro do partido.

Ainda em 2021, o grupo Organized Crime and Corruption and Reporting Project, um consórcio internacional formado por jornalistas investigativos, teve acesso a dados oficiais do governo de Luxemburgo, país conhecido como paraíso fiscal, e demonstrou que Belmonte possui uma empresa não declarada no país — fato que ele negou até ser confrontado com os documentos oficiais pela revista piauí. Possuir bens e direitos no exterior sem declaração na Receita Federal é crime.

Além disso, Belmonte já foi condenado pela CVM (Comissão de Valores Mobiliários) por irregularidades e prejuízos causados ao patrimônio de uma outra empresa entre 2003 e 2004. Como punição, ficou impossibilitado de exercer o cargo de administrador ou conselheiro fiscal de companhias abertas por cinco anos.

Para além dos dilemas financeiros, Belmonte também se ocupa com pautas morais. Em um texto de 2008, obtido pelo jornalista Carlos Minuano em reportagem para o TAB UOL, o advogado afirma que a UDV jamais poderá concordar com a “prática do homossexualismo”, “visto que contraria a origem natural da existência humana”, se opondo ainda ao casamento homoafetivo por temer uma possível “extinção da espécie humana”. O documento é uma circular interna da UDV lida dentro de sessões com ayahuasca.

 

Insatisfação declarada

O ultraconservadorismo dos integrantes ficou mais explícito em 2020, quando um áudio de Raimundo Monteiro de Souza, um dos mais antigos líderes da UDV, veio a público. Na mensagem, Monteiro divulgava informações falsas, como a invenção de “cartilhas para crianças de cinco anos defendendo a libertinagem”, repudiava o que chamou de “ideologia de gênero” e pedia votos para Bolsonaro.

Na época, a UDV afirmou que “a manifestação de seus integrantes ou dirigentes a respeito de política deve ser considerada posicionamento pessoal dentro da liberdade de pensar e de escolha que cabe a cada cidadão brasileiro.” Mas houve membros que se mostraram profundamente incomodados.

Dentro da UDV, os sócios podem pertencer a quatro instâncias diferentes, sendo elas o quadro de sócios, o corpo instrutivo, o corpo do conselho e o quadro de mestres. Ao longo do tempo, os membros podem se mover entre essas instâncias. O grupo que começou a pensar na carta de resposta às manifestações bolsonaristas tinha cerca de 40 pessoas, no Telegram, e contava com representantes dos diferentes graus de hierarquia, incluindo intelectuais, professores, psicólogos, médicos e outros profissionais, chegando a possuir 120 pessoas em seu ápice.

“Com o crescimento do grupo, uma pessoa entrou e tirou prints de conversas nas quais alguns dirigentes eram chamados de ‘gagá’, ou tendo seus envolvimentos com escândalos políticos criticados”, afirma o representante, explicando que o movimento do grupo gerou consequências. “Algumas pessoas teriam sido punidas não pela carta em si, mas pelo fato de terem se referido ‘desrespeitosamente’ a esses mestres.”

A punição é o motivo pelo qual a carta foi escrita de forma anônima. Estar em um dos quadros da instituição não garante a permanência vitalícia do associado ali, seja porque ele pode passar a instâncias superiores, ou porque pode ser “rebaixado”. “Na UDV, para efeitos de punição, as pessoas ‘mudam de lugar’, assim, neste episódio, cinco conselheiros voltaram ao corpo instrutivo e três pessoas do corpo instrutivo voltaram para o quadro de sócios”, explica.

Mas a carta também teve efeitos positivos. Os mestres bolsonaristas, por exemplo, passaram a ter menos espaço. “Na UDV, a habilidade oratória e narrativa dos mestres, além da memória das histórias e causos envolvendo o mestre Gabriel e a ‘refundação’ da UDV, fazem com que eles sejam mais ou menos requisitados pelos diversos núcleos, que promovem suas viagens a fim de recebê-los e usufruir de tais habilidades e conhecimento da religiosidade ali praticada. Esses mestres tiveram sua agenda drasticamente reduzida após a insatisfação ter sido declarada.”

Como aponta o documento que oficializou a insatisfação, as políticas do governo, pautadas pela destruição ambiental, negação da ciência e valorização do discurso de ódio, em nada tem a ver com os ensinamentos do mestre fundador da UDV. Nem com a defesa da democracia e dos direitos humanos. “A ideia, reforçada por alguns, de que o apoio ao atual governo teria como pressuposto auxiliar a União do Vegetal, na nossa compreensão, não condiz com o que aprendemos na União”, diz a carta. “Cativar as autoridades é bem diferente de fazer o jogo de poder ou de ignorar os nossos princípios.”

Procurada pela reportagem, a UDV não respondeu às solicitações de entrevista.

Comentários

Respostas de 13

  1. Fiquei por 26 anos na UDV, de lá sai em 2019, já bastante incomodado com a ascensão dos Bolsonarista dentro da instituição. A notória bandidagem deste Sr. Luiz Felipe Belmonte dos Santos está vindo à tona. Fica a sugestão, para o autor desta, aprofundar o jornalismo investigativo, indo nas raízes de um precatório em Rondônia, ganho pelo Belmonte, que desentendeu-se (“passou a perna”?) em sócios e se exilou em Londres, face ameaças de morte que recebia. Este cidadão tem um Núcleo próprio em Brasília (ou arredores), frequentado pelas altas esferas da UDV, que ironicamente se chama – Vale Dourado.

  2. Acho estranho considerar , quem faz parte um grupo assim , alguém a favor da paz, mesmo professando aos quatro cantos o seu ódio a quem é conservador, ou a quem apoia um grupo que tenha diferente pensamentos aos seus. Expressam ODIO através de seu discurso, de suas ações e seus pensamentos, mas se consideram ‘bondosos’ ( afinal, pensam estão do ” lado certo”).
    Não é assim que se consegue a PAZ!!
    São uns iludidos trabalhando sabemos para ‘quem’.
    Prefiro seguir com os ensinamentos de Jesus de amar e perdoar. (‘ pois não sabem o que fazem’.. ) .

    1. Não vi nenhum discurso de ódio, seja na matéria, seja no que foi referido a respeito da carta. O que vi foi a exposição de fatos e da importância de haver coerência com o que prega a essência da instituição que se representa. Infelizmente temos visto uma quantidade absurda de líderes religiosos, de todos os tipos, fazendo declarações e tendo posicionamento que vão contra a essência do ser cristão e do ser humano; deturpando seja a Bíblia, seja o Livro dos Espíritas; as bases deixadas pelo Mestre Gabril, por Buda e tantos outros. Sou de acordo com a citação: “temos todos o nosso livre-arbítrio, mas, como ensina o mestre [Gabriel], temos responsabilidade pelos lugares que ocupamos”.

  3. EU FIQUEI POR 15 ANOS NA UDV, E RECEBIA FAKE NEWS DE MESTRE REPRESENTANTE FAZENDO CAMPANHA PARA O BOZO, MÉDICOS NEGACIONISTAS APOIADORES , E MESTRES ENVOLVIDOS EM ESCANDALOS…TÔ LIVRE DISSO

  4. A UDV tem como base a família, valores morais e conservadores. Jamais iria apoiar um governo corrupto – de um ex-presidiário condenado em todas as instâncias
    do sistema judiciário – financiador de ditaduras socialistas (berço do comunismo) onde não se respeita o pluralismo religioso. Aliás quem se diz cristão e vota num partido de esquerda está vivendo num círculo de ignorância, pois sabemos as ideias perversas que esse partido demoníaco trabalha, só dá uma olhadinha em quem está em volta dessa turminha aí

  5. Se as pessoas que lerem esse post deste site não tiveram a oportunidade de conhecer a carta do M. Monteiro, como obter um exame das acusações infundadas e reconhecidamente parcial? A descrição do currículo do jornalista somente mostra sua trajetória em publicações reconhecidamente autoconservadoras. Seria interessante publicar a Carta do M. Monteiro, para dar oportunidade aos leitores de conhecê-la e dá-los a chance de tirar suas próprias conclusões e não enchê-los de opiniões que confrontam os valores conservadores.

  6. Se as pessoas que lerem esse post deste site não tiveram a oportunidade de conhecer a carta do M. Monteiro, como obter um exame das acusações infundadas e reconhecidamente parcial? A descrição do currículo do jornalista somente mostra sua trajetória em publicações reconhecidamente anticonservadoras. Seria interessante publicar a Carta do M. Monteiro, para dar oportunidade aos leitores de conhecê-la e dá-los a chance de tirar suas próprias conclusões e não enchê-los de opiniões que confrontam os valores conservadores.

  7. Tenho gratidão à obra, à UDV. Pelo poder da ayahuasca vivi um grande despertar de consciência lá dentro no pouco tempo em que fui sócio (menos de 2 anos). Mas eu sou um dos que optou por sair frente à inaceitável bolsonarização da instituição. No meu antigo núcleo, uma maioria obscena de membros subscreveu às contradições morais flagrantes e absurdas apontadas na carta. Ler comentários nessa matéria de pessoas com a consciência ainda intoxicada pelo engano do discurso ideológico me faz questionar ainda mais o caráter sagrado do chá. Para mim está claro que sim, a ayahuasca é um poderoso remédio para o corpo e para a mente, mas não supera todos os vícios dos humanos, que mal educados moralmente, encontram na experiência mística do chá um reforço para seus preconceitos, para sua estreiteza de pensamento, para sua perversidade.

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