Embora de forma gradual, o debate sobre psicodélicos, maconha e saúde tem avançado no Brasil. Aspectos éticos, técnicos e científicos, além de oportunidades e desafios para a atuação profissional, foram discutidos em um evento realizado em Brasília no final de 2024, promovido pelo CFP (Conselho Federal de Psicologia).
Com a presença de especialistas da área, o “Congresso Brasileiro de Psicologia, Maconha e Psicodélicos: ética, saberes ancestrais e os caminhos para atuação”, teve como foco três eixos temáticos: marcos legais e políticas públicas; psicoterapias e outras clínicas: dimensão ético-política e regulamentação profissional; cultura e povos tradicionais: reparação social, acesso e inclusão.
Plural, o evento contou com a participação de pessoas indígenas, LGBTQIAP+, estudantes, pesquisadores, gestores, conselheiros, profissionais de saúde e integrantes de movimentos sociais. Além disso, representou um marco histórico no debate social, político, ético e cultural dentro do contexto dos conselhos de psicologia.
Isso porque reafirmou o posicionamento ético-político dessa autarquia de direito público no cumprimento de seus objetivos de regulamentar, orientar e fiscalizar o exercício profissional, garantindo sua autonomia administrativa e financeira.
Entre os temas que se destacaram no debate, está a crescente demanda de pessoas e comunidades urbanas por saberes e práticas de cura com substâncias naturalmente produzidas por plantas ou fungos sagrados, tradicionalmente utilizadas no xamanismo indígena em diversas culturas e atualmente denominadas medicinas psicodélicas ou enteógenas.
Outro tema em debate foi o crescente volume de publicações científicas sobre pesquisas que investigam o uso de medicinas de efeitos psicoativos no tratamento de enfermidades em saúde mental. Muitas dessas pesquisas, no entanto, também evidenciam as injustiças históricas sofridas pelos povos originários, ao defenderem a legitimidade do uso dessas medicinas em contextos tradicionais, sem que sejam expropriadas de seus saberes.
Também esteve em debate o alto volume de publicações científicas sobre pesquisas de tratamentos de enfermidades em saúde mental com esses compostos psicoativos, muitas vezes reafirmando as injustiças aos povos originários por defenderem a legitimidade do uso de tais medicinas nos contextos tradicionais e não deles expropriados.
O evento trouxe ainda reflexões sobre a medicinalização das práticas ancestrais como estratégia de apropriação e regulamentação desses conhecimentos. Esse processo busca validar tais saberes por meio do poder médico, condicionando o acesso a uma série de burocracias que restringem o uso a determinados públicos. Enquanto isso, os povos que tradicionalmente utilizam essas substâncias seguem marginalizados e sem o devido reconhecimento.
Outro ponto abordado foi o avanço dos movimentos culturais em defesa dos povos indígenas e dos rituais tradicionais de cura com essas plantas e fungos. Esse fenômeno tem impulsionado o chamado turismo psicodélico ou turismo xamânico, tanto no Brasil quanto no mundo.
O evento se destacou pelas críticas à abordagem exagerada — muitas vezes empírica e romantizada — que atribui efeitos milagrosos a essas substâncias e terapias para praticamente todos os problemas de saúde mental da atualidade.
Além disso, houve questionamentos à forma como a mídia trata o tema, de maneira superficial e frequentemente orientada por interesses político-econômicos ligados à indústria farmacêutica e à comercialização de novos medicamentos. Esse movimento, quase sempre, desconsidera o respeito às tradições dos povos originários e aos saberes ancestrais associados.
O evento deu espaço a múltiplas vozes de pessoas e povos historicamente oprimidos pelo colonialismo, pela guerra às drogas e pelo apagamento cultural. Essas populações seguem na luta por reconhecimento, reparação e liberdade, além do respeito ao uso tradicional de medicinas com plantas e fungos sagrados.
O debate ressaltou a importância de afirmar as culturas correspondentes e de incluir as interseccionalidades e os determinantes sociais da saúde na esfera pública, em alinhamento com os princípios e diretrizes do SUS (Sistema Único de Saúde).
Pesquisadores e cientistas se posicionaram como usuários de substâncias psicoativas, buscando desconstruir a imagem propagada pela mídia, que frequentemente retrata esses indivíduos como cidadãos improdutivos e perigosos. Essa narrativa, como destacado no evento, está atrelada a interesses econômicos e políticos que se beneficiam da perpetuação do pânico moral na sociedade.
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Debate em movimento
Em 2023, a discussão sobre o tema no campo da psicologia e da saúde mental ganhou força com a realização do 1º Congresso de Psicologia e Cannabis, ocorrido entre 26 e 28 de abril, em Belo Horizonte.
O evento foi organizado pelo CRP (Conselho Regional de Psicologia) de Minas Gerais e pela rede PsicoCannabis (www.psicocannabis.com.br), uma rede brasileira de psicologia especializada no uso medicinal e terapêutico da cannabis e seus derivados, em parceria com a UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
Diante da crescente demanda de pacientes, familiares e cuidadores que fazem uso medicinal ou terapêutico da cannabis, o evento expandiu o debate sobre o papel da psicologia como ciência e profissão. A discussão abordou, sobretudo, os impactos da estigmatização da planta e as consequências das políticas proibicionistas sobre drogas no comprometimento da saúde mental.
Em 2024, aproximadamente 672 mil pacientes no Brasil utilizaram cannabis medicinal no tratamento de diversas doenças e transtornos, abrangendo cerca de 80% dos municípios do país. O número representa um recorde e um aumento de 56% em relação ao ano anterior, de acordo com dados do 3º Anuário da Cannabis Medicinal no Brasil, elaborado pela consultoria Kaya Mind.
Os estudos científicos sobre a cannabis têm se intensificado desde a descoberta do sistema endocanabinoide, responsável por regular os demais sistemas do corpo humano e promover o equilíbrio da saúde (homeostase).
Estigma e preconceito
A maconha é uma planta medicinal com potencial terapêutico reconhecido e uma relação ancestral com a humanidade. No entanto, ao longo do tempo, o preconceito e o estigma contribuíram para a dissociação entre cannabis e maconha, assim como entre medicina e terapia.
Apesar dos avanços no acolhimento e tratamento de pessoas com condições de saúde elegíveis para o uso da cannabis, populações marginalizadas continuam sendo sistematicamente excluídas do debate. Essa realidade evidencia a interseccionalidade opressiva em ação.
As políticas antidrogas, de caráter proibicionista, eugenista e racista, alimentam preconceitos e penalizam pessoas pretas, pobres e periféricas, que enfrentam a violência tanto do tráfico quanto da polícia. Esse cenário resulta na criminalização do acesso ao direito à saúde.
No Brasil, o debate público sobre a cannabis em contexto terapêutico tem sido protagonizado por mulheres, especialmente mães de crianças neurodivergentes — vítimas invisibilizadas da violência gerada pelo proibicionismo. Muitas delas enfrentam um sistema que as sobrecarrega com a responsabilidade do cuidado, enquanto seu próprio bem-estar é secundarizado. Politizar a maternidade e o cuidado, com o apoio do movimento feminista e da luta pela cannabis, torna-se, assim, uma estratégia de amor em ação.
A necessidade de uma nova lei de drogas se torna cada vez mais urgente para superar o modelo de governança baseado na segurança pública e na justiça criminal, bem como o financiamento do modelo asilar de abstinência como tratamento e o uso de valores morais como estratégia de prevenção. A mudança visa interromper a necropolítica que naturaliza o encarceramento e o genocídio de determinadas populações, além de reconhecer a redução de danos como um paradigma essencial para a promoção da saúde e dos direitos humanos.
Atualmente, a liberdade da planta em sua integralidade é uma questão de saúde pública, envolvendo dimensões sociais, científicas e clínicas, todas atravessadas por relações de poder e interesses de mercado, muitas vezes em conflito. Por isso, mais do que um tema de saúde, trata-se, sobretudo, de uma questão política. A libertação da maconha traz benefícios sociais, econômicos, culturais, ritualísticos, terapêuticos e medicinais.
Projetos de lei que aprovam a cannabis no SUS devem ser regulamentados sem, no entanto, substituir o direito ao autocultivo. O plantio próprio permite a autogestão da saúde de forma integral, universal e equânime. Além disso, a regularização e o fortalecimento do cultivo em escala, com qualidade, representam uma potência econômica e um avanço para a soberania nacional, garantindo maior acesso ao direito à saúde.
A mobilização social torna-se urgente para garantir a participação ativa da população, incluindo indivíduos, famílias e comunidades, na luta por cidadania e pelas conquistas necessárias à reparação socio-histórica da maconha. Isso implica o reconhecimento dos saberes ancestrais sobre seu uso milenar como medicina, terapia e instrumento de bem-estar. Mais do que a liberação e a descriminalização, é essencial construir um projeto político emancipatório, que defenda a vida com dignidade.
Cannabis é maconha. Descolonizar o pensamento na saúde e entre os profissionais da área é um passo fundamental. Defendemos a inclusão desse conhecimento nos cursos de graduação em saúde, reconhecendo a maconha como planta medicinal e garantindo seu cultivo nas Farmácias Vivas do SUS.
A psicologia, enquanto ciência e profissão, busca contribuir para a desconstrução do preconceito, sistematizando, de forma técnica, ética, estética e política, a vivência empírica da clínica psicossocial. O objetivo é produzir conhecimento que fortaleça a defesa da cannabis como primeira opção terapêutica, amplie o espaço de voz para as mulheres e promova a democracia.
Silvana S. Rossi é psicóloga, mestre em saúde coletiva; Giovanna Bruna R. Martins é assistente social, especialista em saúde mental, álcool e outras drogas.
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