Após quase um ano preso no México por viajar com ayahuasca, o curandeiro peruano José Campos, 64, de Pucallpa, na região amazônica de Ucayali, no Peru, foi absolvido no início deste mês. Trata-se do primeiro julgamento realizado no país relacionado à bebida psicodélica amazônica. A decisão foi considerada histórica, e não deve ser a última.
Além do curandeiro peruano, que havia sido acusado de narcotráfico, outras sete pessoas – incluindo três indígenas sul-americanos – foram presas em 2022 pelo mesmo motivo. Todos enfrentam processos penais sem direito à liberdade, devido ao pedido mexicano de prisão preventiva informal, figura jurídica contra a qual a Corte Interamericana de Direitos Humanos se pronunciou em diversas ocasiões.
Detido no Aeroporto Internacional da Cidade do México, no dia 9 de março de 2022, Campos passou 11 meses preso, aguardando o julgamento, acusado de entrar com drogas no país. Segundo informações das autoridades mexicanas, o curandeiro portava em sua bagagem 3,7 quilos de ayahuasca. Se condenado, o peruano poderia pegar entre oito e 25 anos de prisão.
Bastante conhecido no meio, o xamã José Campos há cerca de 40 anos dirige cerimônias com a bebida ayahuasca no Peru e em outros países.
Ele também foi um dos fundadores do centro Takiwasi (nome quíchua que significa “a casa que canta”), localizada em Tarapoto, no estado de San Martin, na Amazônia peruana, que há décadas trabalha na recuperação de dependentes químicos utilizando um tratamento que combina ferramentas da medicina tradicional indígena e da psicologia.
É importante lembrar que no Peru, desde 2008, os usos tradicionais e indígenas da ayahuasca são reconhecidos e protegidos como patrimônio cultural do país. A bebida, preparada com folhas de um arbusto chamado chacrona (Psychotria viridis) e um cipó conhecido como mariri (Banisteriopsis caapi), é utilizada há centenas de anos por mais de setenta povos indígenas e culturas mestiças da Amazônia.
No Brasil, além do uso por comunidades indígenas, o chá foi incorporado ao culto de grupos religiosos sincréticos, como Santo Daime e UDV (União do Vegetal). Essas práticas são protegidas por uma regulamentação de 2010 do Conad (Conselho Nacional de Políticas Sobre Drogas). E há mais de uma década, pesquisas investigam o potencial terapêutico da ayahuasca para transtornos mentais, como depressão, ansiedade e vícios.
De acordo com o Conselho Internacional de Controle de Narcóticos das Nações Unidas, da ONU, a ayahuasca atualmente não é controlada por nenhum acordo internacional, entretanto alguns países possuem leis que proíbem a bebida, como França, Itália e Rússia.
No caso do processo no México envolvendo o curandeiro peruano e outras pessoas, o que norteou a prisão foi uma confusão bastante comum, que também ocorre em outros países. A DMT (N,N-dimetiltriptamina), uma das substâncias ativa na ayahuasca, está incluída na lista I da Convenção das Nações Unidas sobre Substâncias Psicotrópicas de 1971, categoria de drogas que “causam sérios danos à saúde pública”.
Conforme informou a reportagem da série “Yes, nós temos ciência psicodélica”, da Psicodelicamente, a DMT é uma substância do grupo das triptaminas, e um dos únicos psicodélicos endógenos conhecidos até o momento. Além de estar presente em raízes, caules e folhas de diversas plantas, também é produzido pelo organismo de seres humanos e de animais mamíferos, marinhos e anfíbios. Porém, sabe-se ainda muito pouco sobre o misterioso composto, também chamado de “molécula do espírito”.

Respeito aos direitos dos povos indígenas
O julgamento do curandeiro José Campos no México foi o primeiro de uma série de casos semelhantes, em que os envolvidos estão presos há meses devido à prisão preventiva extraoficial vigente no país por supostos “crimes contra a saúde”.
“Não se baseia nem nos direitos humanos nem nas amplas evidências científicas disponíveis”, afirma Natalia Rebollo, advogada e coordenadora do Programa de Defesa Legal do ADF (Ayahuasca Defense Fund) do Iceers (sigla em inglês para The International Center for Ethnobotanical Education, Research, and Service), sediado em Barcelona, na Espanha, que atuou na defesa do peruano.
Para ela, o processo é resultado de um sistema rígido de drogas, que precisa ser revisto. E a absolvição do curandeiro, na opinião do Iceers, estabelece um precedente legal de respeito aos direitos dos povos indígenas no México e no mundo.
Segundo informações do Iceers, os advogados do ADF, Natalia Rebollo e Jesús Alonso Olamendi, estão acompanhando processos em várias partes do mundo, oferecendo provas, relatórios e estratégias jurídicas que permitiram estabelecer importantes jurisprudências no cenário internacional.
José Carlos Bouso, farmacologista e diretor científico do Iceers, participou do processo como perito na área de ciência e farmacologia, demonstrando que, com base nas evidências científicas disponíveis, a ayahuasca não oferece risco à saúde pública.
“Apresentamos as evidências existentes sobre os efeitos da ayahuasca na saúde, provenientes tanto de nossas próprias pesquisas quanto das de nossos colegas, explicando de forma mais explícita as duas investigações que publicamos recentemente sobre os efeitos da ayahuasca na saúde pública em grandes populações de usuários”, disse Bouso.
“Essas evidências podem ser usadas hoje em julgamentos como prova da legalidade da ayahuasca e outras plantas psicoativas. Além disso, o ADF se concentrou particularmente no México, lidando com seis dos oito casos que até agora cumprem pena nas prisões do país”, informou o Iceers por meio de um comunicado à imprensa.
Na defesa do curandeiro peruano, a advogada Natalia Rebollo ressaltou a confusão que existe entre ayahuasca e DMT, insistindo nos direitos humanos dos indígenas que usam a ayahuasca de forma ancestral. “Se a ayahuasca fosse controlada pela legislação mexicana, deveria incluir-se o nome botânico das duas plantas que a compõem, como é o caso de outras plantas controladas pela Lei Geral de Saúde [do México], como o peiote (Lophophora williamsii) ou os cogumelos que contêm psilocibina”.

Remédios indígenas
No início do ano, o Senado mexicano sediou o primeiro Fórum Intercultural de Medicina Enteogênica, co-organizado pelo Iceers. O encontro reuniu legisladores, líderes indígenas, psiquiatras, cientistas e especialistas em políticas de medicamentos para debater a regulamentação de enteógenos, como também são chamados algumas substâncias psicodélicas naturais, como ayahuasca.
Representantes do Iceers no evento, defenderam que o caso do curandeiro José Campos era a oportunidade do México se tornar um país pioneiro na regulamentação de medicamentos tradicionais indígenas. O evento também debateu um projeto de regulamentação da psilocibina.
Convocado como uma das testemunhas de defesa no julgamento de José Campos, o antropólogo Mauricio Guzmán, ressaltou que há evidências arqueológicas de uso ritual da ayahuasca há mais de mil anos. “É a medicina ancestral de mais de cem povos no Brasil, Peru, Bolívia, Equador, Colômbia e Venezuela”, explicou o pesquisador ao jornal espanhol El País.
“Embora em cada lugar receba um nome diferente, esses grupos compartilham uma visão de mundo. Consideram a ayahuasca uma bebida que os deuses deram aos humanos para entender o mundo além do visível, o mundo dos espíritos, que é essencial para o equilíbrio do universo”, disse Guzmán.
A defesa do curandeiro contou ainda com a atuação voluntária do advogado Fernando Gómez-Mont, político que foi secretário do Interior de 2008 a 2010, durante o governo de Felipe Calderón, o presidente mexicano que declarou guerra ao narcotráfico.
“Parece-me injusto e errado que uma pessoa esteja na prisão por praticar uma medicina compatível com sua identidade, que ela conhece desde criança como algo válido e valioso”, disse Gómez-Mont, também em entrevista ao El País.
Um levantamento do Iceers divulgado no início deste ano, apurou pelo menos 62 incidentes legais por porte de psicodélicos em 2022. Mais de 30 com a bebida ayahuasca. Entre os casos, dois ocorreram no Brasil.

(Com informações do Iceers e do jornal El País)
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