Se pararmos para observar de que forma a cobertura jornalística trata o assunto das drogas no Brasil, são perceptíveis alguns vieses históricos que polarizam o debate público. O pânico moral relacionado às substâncias tem uma longa tradição no mundo ocidental. De acordo com o sociólogo Norte-Americano Stanley Cohen, o pânico moral emerge de uma condição, episódio, comportamento, indivíduo ou grupo que se torna uma ameaça aos valores sociais. Com isso, tende-se a uma representação estereotipada e maniqueísta por parte da mídia. Este fenômeno social atingiu em cheio a cultura psicodélica no final dos anos 1960, gerando uma pausa nas pesquisas científicas nesta área por pelo menos 30 anos. O contexto mais amplo da war on drugs foi igualmente decisivo em sepultar qualquer possibilidade do uso terapêutico destas substâncias, igualando-as a outras drogas como a cocaína e a heroína.
Estamos em plena renascença psicodélica e na era da cannabis medicinal. Entretanto, o campo progressista padece de dissonância cognitiva ao se deparar com a realidade de que, à despeito de toda uma percepção de avanços em relação ao tema drogas, a opinião pública majoritária, a legislação e a percepção dos políticos não caminhou de mãos dadas, especialmente no Brasil. O encarceramento de pobres negros periféricos por crimes relacionados à drogas ainda é uma realidade geradora de exclusão social definitiva e potencialização do crime organizado. E pelo jeito, este cenário perdurará por muito tempo.
Aprofundando um pouco no problema: o debate sobre as “cracolândias” e os “noias” – termos em si mais que estigmatizantes – direciona a opinião pública para soluções higienistas disfarçadas de conduta médica. Um adendo significativo é o tratamento pouco enfático da mídia em relação aos malefícios do álcool. Homicídios, suicídios, acidentes de trânsito, violência doméstica, incapacidade e mortalidade precoce são associadas ao álcool. Apesar de ser a droga mais consumida em todo mundo, há uma evidente “passada de pano” cultural e econômica. Chama a atenção o fato do Brasil ainda não dispor de uma política pública relacionada ao álcool, mesmo sabendo que ele – além do tabaco – é a grande “porta de entrada” para outras drogas, especialmente quando consumido na infância e adolescência.
Existem tragédias associadas ao uso de outras drogas? Sem dúvida que sim mas a proporção de indivíduos que usam outras drogas é menor em relação ao álcool. O uso pouco responsável de drogas pode levar a consequências imprevisíveis e graves. O mesmo se aplica às medicações prescritas, haja vista o alto grau de dependência associada a indutores do sono como o zolpidem.
Infelizmente, a sociedade padece de um triplo infortúnio quando falamos de drogas: geralmente não há acesso à informação técnica adequada, o usuário é estigmatizado e criminalizado e inovações científicas são obscurecidas.
As mortes recentes de Didja Cardoso e Matthew Perry colocaram a cetamina sob os holofotes da mídia. Denúncias de rituais, tráfico de drogas e a suspeita de overdose de cetamina serviram de pano de fundo para relatos aterrorizantes do uso recreativo e dos reais riscos do abuso e dependência. No entanto, a mesma atenção não tem sido destinada para uma realidade da pesquisa científica e prática clínica em todo o mundo: A administração com supervisão clínica da cetamina tem auxiliado pessoas com quadros depressivos que não respondem aos tratamentos convencionais – denominados de depressão resistente ao tratamento e situações de risco grave de suicídio. O uso em outras condições como transtorno de personalidade borderline e dor crônica está sendo estudado.
Mais do que isso: a cetamina pode ser considerada como um psicodélico atípico., ou seja, distinta dos psicodélicos clássicos com LSD, psilocibina, mescalina e DMT por conta de seus mecanismos de ação. Entretanto, experiências místicas e de dissolução do ego são relatadas. Infelizmente, os efeitos psicodélicos da cetamina ainda são pouco explorados clinicamente apesar de uma literatura mundial crescente voltada à psicoterapia assistida com cetamina, também denominada de terapia psicodélica com cetamina.
No Brasil, o uso clínico tem focado essencialmente no uso farmacológico da cetamina sem suporte psicoterápico. O pânico moral se origina e vitimiza o avanço da própria medicina: a demonização dos chamados estados não- ordinários de consciência.
Estes estados podem ser induzidos por transe, jejum, atividade física, rituais, meditação e por substâncias psicoativas. O uso religioso e terapêutico destas práticas se perde na história da humanidade e o emprego clínico dos psicodélicos resgata esta tradição. O efeito psicodélico potencializa o encontro terapêutico e facilita a construção de sentidos e reestruturação de narrativas. Estes efeitos – para além do efeito farmacológico isoladamente e da mera remissão de sintomas depressivos, por exemplo – devem ser explorados e reforçados pela psicoterapia. A cetamina será por certo a única substância psicodélica com uso clínico autorizado no Brasil no médio prazo. Ainda há um longo caminho regulatório e de mudança cultural, mas o seu baixo custo facilitaria sua utilização no contexto do SUS (Sistema Único de Saúde ). A formação de terapeutas psicodélicos de cetamina é fundamental para que esta evolução ocorra.
A mídia enquanto formação de opinião e indutora de mudança cultural pode e deve contribuir para o amadurecimento do debate social sobre estas questões. Longe de serem panaceias angelicais ou agentes da destruição da humanidade, as substâncias são diferentes entre si e estamos em meio a crise de saúde mental com taxas mundiais crescentes de depressão, ansiedade e suicídio. Neste contexto, a cetamina e os outros psicodélicos podem ser ferramentas úteis. A sociedade como um todo agradece.
*Rodrigo Leite, é psiquiatra, pós-graduando da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas)
Uma resposta
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