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O admirável mundo novo psicodélico

Cientistas pelo mundo todo investigam drogas capazes de modificar a percepção e a visão de mundo; após décadas de proibição, elas ressurgem como esperança de tratamento para diversas doenças

Carlos Minuano, para a Psicodelicamente e CartaCapital

Foto: Freepik

Drogas fantásticas. Essa foi uma das primeiras definições para compostos hoje chamados de psicodélicos, ou – equivocadamente – alucinógenos. O neologismo sugerido pelo farmacologista alemão Ludwig Lewin, em 1920 se refere a substâncias como mescalina, psilocibina, ayahuasca, ibogaína e LSD (dietilamida do ácido lisérgico) que, mesmo em pequenas doses, podem modificar a percepção e visão de mundo. Algumas, encontradas na natureza, são chamadas de plantas de poder, consideradas sagradas e usadas há milhares de anos em rituais tradicionais de povos indígenas.

“Lewin classificou em cinco categorias as substâncias que alteram a mente: excitantes, hipnóticas, inebriantes, euforizantes e as fantásticas, o ramo do que a gente chamaria de alucinógenos ou psicodélicos”, explica o historiador da USP (Universidade de São Paulo), Henrique Carneiro. “Toda a ciência vinculada à noção da consciência humana, que decorre sobretudo da filosofia, vai ter como preocupação os estados da consciência, um deles são os estados alterados farmacologicamente”, pontua o historiador.

Veja abaixo a entrevista completa de Henrique Carneiro:

Mas, o início do interesse de cientistas por esses misteriosos compostos, no início do século passado, foi só a primeira parte de uma história que também pode ser definida como fantástica. Desde então, os psicodélicos vivem uma jornada de muitos altos e baixos. Uma longa e sinuosa viagem, repleta de visões, êxtase e expansão da consciência, mas também com fartas doses de piração e bad trips.

Na década de 1950, o LSD (sintetizado pelo químico suiço Albert Hofmann em 1938), e a psilocibina chegaram a ser consideradas drogas milagrosas pela nata da comunidade psiquiátrica da época. A farmacêutica Sandoz, onde Hofmann trabalhava, para incentivar a pesquisa, distribuiu LSD gratuitamente para psiquiatras, psicólogos e terapeutas no mundo inteiro. E deu certo, centenas de estudos foram realizados, inclusive no Brasil, durante anos, no Hospital das Clínicas de São Paulo.

E tudo isso aconteceu antes do alucinado Verão do Amor, como ficou conhecida a revolução hippie, turbinada pelos psicodélicos, que teve início em meados dos anos de 1960 nos Estados Unidos.

Os psicodélicos também tiveram uma história de uso militar, ainda não muito conhecida. Os nazistas usaram algumas dessas drogas em interrogatórios e para tortura em campos de concentração. Depois a CIA (agência de inteligência americana) também se interessou por essas substâncias, e realizou uma penca de experimentos com o objetivo de lavagem cerebral.

Outro que ajudou a queimar o filme dos psicodélicos foi o malucão Charles Manson. Sabe-se que ele usava LSD junto com sua seita de doidões, com a qual cometeu uma série de assassinatos bárbaros, entre eles o da atriz e modelo Sharon Tate, em 1969.

Mas, nessa época, as coisas já tinham mesmo saído do eixo. O LSD virou uma espécie de rito de passagem para jovens. “Aumentou muito o consumo nos EUA e por uma questão de preconceito e desinformação o governo resolveu proibir ao invés de regulamentar”, conta o médico Bruno Rasmussen, diretor médico das Clínicas Beneva, especializada em terapias psicodélicas.

 

Veja abaixo a entrevista completa de Bruno Rasmussen:

 

 

Em 1965, fabricar e vender LSD se tornou ilegal, no ano seguinte a Sandoz parou sua produção. Em 1968, Richard Nixon é eleito e lança sua campanha War on drugs (Guerra às drogas) dando início a uma cruzada proibicionista. E, assim, no ano conhecido como o que abalou o mundo, a posse de ácido se tornou crime nos EUA.

Médico Bruno Rasmussen já realizou mais de 2 mil atendimentos com Ibogaína. Vinícius Bopprê/Psicodelicamente

Outros psicodélicos, como psilocibina e mescalina, também foram proibidas na categoria mais restritiva, como drogas de abuso, sem valor terapêutico. Posse e consumo desses compostos se tornaram crime. Para justificar sua decisão, que influenciou o resto do mundo, o governo americano tratou de instalar um clima de pânico na sociedade em relação aos psicodélicos.

“De Woodstock à chacina de Charles Manson, a divulgação de bad trips e a proibição criaram o clima paranoico que tornou as experiências lisérgicas influenciadas por expectativas negativas”, escreveu o historiador Henrique Carneiro no livro “O Uso Ritual das Plantas de Poder” (organizado por Beatriz Labate e Sandra Goulart).

Foi quando começou a circular a primeira grande onda de fake news sobre psicodélicos. Reportagens falavam que o LSD poderia levar a morte, causar psicose, esquizofrenia, induzir ao suicídio, até a maconha entrou no pacote de propaganda antidrogas. “Mas nada era verdade”, afirma o médico Bruno Rasmussen.

“É claro que se você der LSD para alguém com problema mental, essa pessoa pode ter algum problema, mas isso pode ocorrer com qualquer substância”, sublinha o médico. “Há pessoas com esquizofrenia que tomam antidepressivos e surtam, as vezes nem precisa tomar nada, um som, uma palavra, uma situação, podem fazer ela surtar.”

O médico ressalta que os compostos psicodélicos são diferentes das chamadas drogas de abuso. “Quando entram no organismo promovem uma mudança na arquitetura do cérebro, um aumento da conexão entre os neurônios.”

E na grande maioria das vezes, a experiência psicodélica é positiva para a pessoa, acrescenta Rasmussen. Segundo ele, principalmente se a pessoa estiver passando por algum problema como dependência química, transtorno do estresse pós-traumático ou depressão.

Ele ressalta que os psicodélicos são uma opção principalmente para doenças sem tratamento disponível, ou no caso de transtornos resistentes aos medicamentos que existem atualmente. “Tem dependente químico, por exemplo, usando vários tipos de remédios, antidepressivos, estabilizadores de humor, sedativos e não resolve nada, continua se drogando.”

O médico destaca ainda outra diferença dos psicodélicos em relação às drogas de abuso. “Não causam dependência”, diz Rasmussen. Ele cita como exemplo o LSD. “Não existem dependentes, o que se observa às vezes é um uso recreativo, mas não porque ele sinta fissura ou que vá sofrer uma crise de abstinência se não usar”, argumenta o médico.

 

Psicodélicos ou alucinógenos?

A confusão em torno dos psicodélicos é antiga e começa pelo nome dessas substâncias. Elas ficaram mais conhecidas como alucinógenas desde que o alemão Arthur Heffter isolou a primeira droga psicodélica,  a mescalina, no final do século 19, em 1897.

“Depois vai ter uma série de estudos experimentais com pacientes, realizada por alemães a partir de 1928, que vão trabalhar com a ideia de que é uma substância essencialmente visionária”, observa o historiador Henrique Carneiro.

Foi só no anos 1950 que a palavra psicodélico surgiu no circuito, a partir de conversas entre o psiquiatra Humphry Osmond, um britânico radicado no Canadá, e o escritor inglês Aldous Huxley, autor dos clássicos “As Portas da Percepção e “Admirável Mundo Novo” – que  inspirou o título dessa reportagem.

Criado em 1956, o termo psicodélico é derivado das palavras gregas “mente” e “espírito” e “manifestar”, e pode ser traduzido como algo que “manifesta ou que revela a mente ou o espirito”.

“Huxley talvez seja o maior divulgador popular desse novo conceito, de uma fronteira epistemológica do conhecimento, sobre si mesmo, sobre a consciência humana, e sobre os fármacos que se associam aos processos de consciência”, avalia o historiador da USP.

Para Henrique Carneiro, termo alucinógeno não é preciso. “A alucinação é sempre inconsciente”. Vinícius Bopprê/Psicodelicamente

Apesar de considerado equivocado no meio científico psicodélico, o termo alucinógeno, em volume bem menor, ainda continua a ser usado, principalmente na mídia. “Essa tipologia traz uma ideia de que elas produzem alucinações, o que não é exatamente preciso, porque a alucinação é sempre inconsciente”, observa Carneiro.

 

Renascença psicodélica no Brasil

Depois de décadas de perseguição, e apesar de continuarem proibidas por toda a parte, no início dos anos 2000, as drogas psicodélicas voltaram a ser estudadas por cientistas nas principais universidades do planeta, como na britânica Imperial College e na americana Johns Hopkins. Uma quantidade enorme de estudos clínicos têm revelado resultados cada vez mais impressionantes. Essa nova onda de pesquisas ganhou o nome de renascença psicodélica.

Substâncias como o MDMA (mais conhecido como ecstasy) e a psilocibina (princípio ativo presente nos chamados cogumelos mágicos) estão bem próximas de serem aprovadas para tratamentos disruptivos de transtornos mentais, como traumas, depressão, ansiedade e vícios. E o que o Brasil tem a ver com isso? Por incrível que pareça, muito.

Mesmo com os estragos causados por retrocessos históricos no campo da ciência nos últimos anos, o Brasil em 2021 ocupava o terceiro lugar no ranking de países que mais produzem estudos de impacto sobre psicodélicos, atrás somente dos EUA e do Reino Unido. Os dados são de um levantamento de David Wyndham Lawrence publicado no Journal of Psychoactive Drugs.

O cenário parece otimista, mas cientistas temem pelo futuro. “O Brasil tem ocupado um papel importante nessa renascença psicodélica, apesar de a ciência brasileira estar em uma crise sem precedentes”, afirma Sidarta Ribeiro, neurocientista do Instituto do Cérebro da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte).

Veja abaixo a entrevista completa de Sidarta Ribeiro:

 

“Os estragos do governo Bolsonaro foram máximos”, diz Sidarta Ribeiro. Carlos Minuano/Psicodelicamente

O pesquisador adverte que, para que o país continue participando desse movimento, será necessária uma mudança profunda na política de fomento científico. “Os estragos do governo Bolsonaro foram máximos, a ciência só não foi proibida, mas está em risco porque está sem financiamento e desmoralizada desde o governo Temer.”

“Os cortes dos investimentos em ciência no governo Bolsonaro foram brutais”, concorda o historiador Henrique Carneiro. “No campo vinculado às ciências humanas ou ambientais e sociais foi pior ainda”. O especialista vê ainda outros aspectos desafiadores no Brasil.

O historiador reclama da obstaculização da legalização do uso medicinal ou recreativo, que já ocorre nos EUA, no Canadá e em outras partes do mundo, e também de gargalos que emperram a ciência. “É uma proibição da pesquisa, que não tem acesso às substâncias porque são ilegais e a forma de se obtê-las beira o impossível”.

“A situação que o mundo vive é muito estranha”, comenta o neurocientista Sidarta Ribeiro. Para ele, do ponto de vista da regulação das drogas, no século 20 foi muito difícil unir ciência e medicina de boa qualidade.

“Os psicodélicos clássicos e a cannabis são substâncias que produzem novos neurônios e novas sinapses, mas foram proibidas, enquanto outras drogas, cujo abuso pode levar a destruição dos neurônios, foram glorificadas, como o álcool”, compara o neurocientista.

Ribeiro reconhece que no século 21 isso vem mudando rapidamente. Mas por aqui, segundo ele, sofremos os efeitos de uma retirada desorganizada dos proibicionistas. “Os EUA inventaram o proibicionismo, mas já estão saindo dele, assim como o Canadá, a Alemanha, Portugal e a Europa em geral.”

Mas não é o que está acontecendo em países como o Brasil. “Ficamos pagando o pato por essas decisões equivocadas por um tempo muito longo, porque os preconceitos e o pânico moral permanecem.”

E isso acaba afetando diretamente a pesquisa no país, esclarece Ribeiro. “O cientista que esteja nos EUA ou na Europa e queira trabalhar com psicodélicos ou com canabinoides, presentes na maconha, terão muito mais facilidade de adquirir essas substâncias a um preço menor e muito mais rápido do que no Brasil.”

 

 Essa reportagem teve apoio do Instituto Serrapilheira

As entrevistas desta reportagem estão disponíveis no canal da Psicodelicamente      

 

*Yes, nós temos ciência psicodélica

 A série Yes, nós temos ciência psicodélica, realizada pela revista CartaCapital em parceria com a Psicodelicamente, com apoio do Instituto Serrapilheira, vai contar a curiosa e intrigante história da pesquisa científica com substâncias psicodélicas no Brasil. Dos primeiros estudos com LSD e cogumelos mágicos no Hospital das Clínicas de São Paulo na década de 1950 ao cenário atual, com centros de estudos espalhados por todo o país. Por meio de dezenas de entrevistas realizadas durante vários meses em três estados, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Norte com cientistas de diferentes áreas, a série vai mostrar como os psicodélicos chegaram ao momento atual de entusiasmo e efervescência no campo científico brasileiro.

Carlos Minuano

Jornalista e escritor, há mais de duas décadas escreve sobre psicodélicos nos principais veículos jornalísticos do país, como nas revistas CartaCapital, Rolling Stone, jornal Metro. É colaborador do portal UOL desde 2012. Além de dirigir a Psicodelicamente, atualmente trabalha na pesquisa para um livro sobre psicodélicos, que será publicado pela editora Elefante. É autor de duas biografias, “Tons de Clô” (do estilista Clodovil Hernandes) em adaptação para uma série de streaming, e “Raul por trás das canções” (do músico Raul Seixas), ambas publicadas pelo grupo editorial Record.

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