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Manifesto indígena por justiça climática encerra evento em Arujá

Carta lida por Txai Suruí encerra Festival Indígena União dos Povos com apelo por cura da Terra pelos povos originários

Carlos Minuano, de Arujá (SP) para a Psicodelicamente

Foto: Carlos Minuano/Psicodelicamente

“Não há justiça climática sem justiça para os povos indígenas.” Foi com esse recado que a ativista Txai Suruí encerrou a 3ª edição do Festival Indígena União dos Povos (Fiup), realizada de 1º a 4 de maio em Arujá (SP), no feriado prolongado do Dia do Trabalho. O manifesto lido por ela aponta a urgência de ações concretas e o protagonismo dos povos originários diante da crise climática, às vésperas da COP30, que será realizada em Belém (PA), em 2025.

O documento, escrito em conjunto por lideranças de povos indígenas de diferentes etnias, afirma que “a terra não é mercadoria, é vida” e exige participação efetiva nas negociações internacionais, reconhecendo os povos originários como “experts e melhores cuidadores deste planeta”. A carta denuncia o impacto direto das mudanças climáticas nos territórios tradicionais e cobra o fim das promessas vazias por parte dos líderes globais. “A crise climática já afeta nossas vidas. Nós não podemos esperar mais. O tempo é agora. O tempo de ação é urgente”, diz o texto lido por Txai Suruí.

O manifesto também propõe uma nova esperança: não apenas a do futuro, mas a do “esperançado agora”, construída na prática dos saberes ancestrais, no plantio, no canto, na reza e na luta coletiva. “Nós somos os guardiões do futuro. E como o movimento indígena tem dito, nós somos a solução”, conclui a ativista, ecoando o sentimento que tomou conta do encontro (veja abaixo a íntegra do manifesto).

Articulação política e espiritual

A terceira edição do Fiup reuniu lideranças espirituais, ativistas, artistas, pesquisadores e representantes de 17 povos indígenas de todo o país em quatro dias de rodas de conversa, rituais, apresentações culturais, culinária tradicional e trocas interétnicas. Realizado na zona rural de Arujá, no entorno da Mata Atlântica, o evento se consolidou como uma importante plataforma de articulação política e espiritual dos povos originários.

Entre as presenças de destaque estiveram Joenia Wapichana, presidenta da Funai; a deputada federal Célia Xakriabá; a ativista Txai Suruí; a artista e educadora Daiara Tukano; e o líder espiritual Ninawa Pai da Mata, do povo Huni Kuin. A ausência mais sentida foi a do Cacique Raoni Metuktire, que não pôde comparecer por motivos de saúde, mas foi homenageado em diversas falas e cantos ao longo do encontro.

Duas rodas de conversa abordaram diretamente um tema central da Psicodelicamente: a interface entre saberes tradicionais e o uso terapêutico e ritual das plantas. No segundo dia do festival, a roda “Avanços científicos e acessibilidade das plantas nativas” reuniu lideranças espirituais indígenas, pesquisadores, terapeutas e curadores em um diálogo sensível sobre os saberes da floresta e os desafios de sua inserção no mundo urbano e científico. Participaram do encontro Francisquinha Shawãdawa, Cunhã Dju Tupi Guarani, Randy Gonzales, Léo Artese, Luís Fernando Tófoli e Lucia Alberta, com mediação do sociólogo Glauber Loures de Assis. 

No sábado, a roda “Exploração das Tradições Indígenas – Apropriação Cultural e o Uso da Ayahuasca em Contexto Urbano” reuniu Rasu Yawanawá, Ninawa Pai da Mata Huni Kuin, Daiara Tukano, Makairy Fulni-ô e Jairo Lima, com mediação da pesquisadora Caroline Apple. O debate trouxe à tona os limites éticos do uso da ayahuasca fora dos contextos tradicionais e refletiu sobre os riscos da mercantilização e da descaracterização espiritual da bebida amazônica indígena.

MANIFESTO COP30 – UNIÃO DOS POVOS

Lido por Txai Suruí

“Nós, povos originários, reunidos neste festival, neste território para o Festival Indígena União dos Povos, afirmamos com força e sabedoria ancestral que a terra não é mercadoria. A terra é vida.

Nossos cantos, nossos corpos e a cultura são resistência. Nossa existência é um ato político. Por séculos, por milênios, protegemos as florestas, os rios, os animais e os espíritos da natureza.

Não por vaidade, não por ganância, mas por dever e por amor.

Hoje, exigimos que o mundo reconheça que não há justiça climática sem justiça para os povos indígenas.

Aqui nós podemos conhecer e ver um pouco da luta dos povos indígenas, mas também de toda a sua força e entender que essa guerra é espiritual, a qual a gente tá travando.

E às vésperas de mais uma COP, estamos aqui reunidos hoje não só os povos indígenas, mas nessa união de povos para afirmar aos líderes mundiais que chega de promessas vazias, chega de discursos que não nos incluem mais.

A crise climática já afeta nossos territórios. Já ameaça nossas vidas e tenta silenciar nossas vozes. Já sofremos com calor extremo, já sofremos com a seca dos rios, com as enchentes – não só os territórios indígenas, mas também as cidades. Mas somos nós que estamos na linha de frente dessa luta.

E nós não podemos esperar mais. O tempo é agora. O tempo de ação é urgente. Devemos estar no centro das decisões.

Exigimos uma participação real nas negociações climáticas como experts e melhores cuidadores deste planeta. Exigimos a demarcação dos nossos territórios. Exigimos o respeito aos nossos saberes e o respeito às nossas vidas.

Este festival é a prova viva de que a união de todos os povos é a maior força que nós temos contra a destruição da nossa natureza, contra a destruição da nossa floresta.

Aqui ecoaram vozes de todos os cantos, de vários povos, com várias línguas, com várias sabedorias, com vários modos de vida.

E com um só espírito, nós dizemos ao mundo que é nosso dever proteger a nossa mãe Terra.

Que essa força viaje por todos os continentes e atravesse não somente as salas frias das COPs, mas todos os cantos e as salas frias onde são decididos o futuro de todos nós.

Com a potência do nosso tambor e com a clareza da nossa reza, do nosso espírito, que esses lugares sejam transformados também, assim como a gente espera que todos nós de alguma forma saíamos transformados daqui.

Nós somos os guardiões do futuro. E como o movimento indígena tem dito, nós somos a solução.

Nós trazemos não só a esperança do amanhã, mas a esperança do esperançar, do reflorestar, do semear.

Não a esperança somente de um futuro, mas um esperançado agora.

Seguiremos firmes, plantando, cantando, lutando, até que o mundo entenda que a cura da Terra começa aonde tudo começou: com nós, povos originários.

A cobertura da Psicodelicamente no Fiup tem apoio do LIS (Lar e Integração do Ser) e foi realizada em parceria com a Bari Filmes.

Carlos Minuano

Jornalista e escritor, há mais de duas décadas escreve sobre psicodélicos nos principais veículos jornalísticos do país, como nas revistas CartaCapital, Rolling Stone, jornal Metro. É colaborador do portal UOL desde 2012. Além de dirigir a Psicodelicamente, atualmente trabalha na pesquisa para um livro sobre psicodélicos, que será publicado pela editora Elefante. É autor de duas biografias, “Tons de Clô” (do estilista Clodovil Hernandes) em adaptação para uma série de streaming, e “Raul por trás das canções” (do músico Raul Seixas), ambas publicadas pelo grupo editorial Record.

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