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Falta de segurança em grupos de ayahuasca é preocupante, diz médico Wilson Gonzaga

Durante boa parte de sua vida, o psiquiatra Wilson Gonzaga, 68, trabalhou com a bebida psicoativa ayahuasca, utilizada por quase uma centena de etnias indígenas amazônicas e por cultos religiosos sincréticos brasileiros. Bebeu o chá pela primeira vez em 1982 e durante mais de uma década dirigiu o próprio grupo, uma vertente não oficial da UDV (União do vegetal), do qual se afastou em 2009 para viver em Manaus, onde começou a se dedicar ao atendimento psiquiátrico em comunidades às margens do rio Madeira. “Ribeirinho também sofre de ansiedade e depressão”, comenta o médico. Além do seu trânsito pelos caminhos místicos da ayahuasca, Gonzaga, que hoje se reveza entre a selva amazônica e São Paulo, também participa constantemente do debate em torno do chá amazônico e seus usos. Ele integrou o grupo multidisciplinar do Conad (Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas) que reavaliou a substância, trabalho que resultou em uma regulamentação de 2010, que garante o direito do uso religioso da bebida. À Psicodelicamente, o médico falou com preocupação sobre o crescimento exagerado, indiscriminado e multifacetado, do consumo da ayahuasca que, segundo ele, nem sempre vem acompanhado de uma estrutura de acolhimento e cuidados que se deve ter no caso de uma substância tão potente. “É necessário repensar essa questão, porque os grupos estão crescendo de maneira exponencial e acho um tanto preocupante a falta de segurança em alguns rituais que estão sendo realizados”. Veja trechos da entrevista a seguir.

Carlos Minuano, para a Psicodelicamente

Foto: Arquivo pessoal

Você atualmente vive em São Paulo e em Manaus?

Sim. Trabalho em cinco cidades diferentes todos os meses. Remotamente na Barra do Una, no litoral norte de São Paulo, presencial em consultórios na capital paulista e em Manaus, e na selva amazônica em Manicoré e Apuí. Quando me perguntam onde moro, de fato, ironicamente mostro meus sapatos. Moro dentro deles.

Você trabalhou durante anos com a bebida ayahuasca, quais os riscos do uso dessa bebida?

As contraindicações formais mais evidentes são nos casos de transtornos psiquiátricos, como uma psicose subjacente que pode piorar. De uma maneira geral, qualquer sofrimento psíquico, não necessariamente uma psicose, mas um transtorno grave, neurose, depressão, ansiedade, pode ser uma contraindicação para tomar ayahuasca, porque pode agudizar o caso.

Há muita confusão sobre a legalidade do uso do chá, qualquer um pode comprar na internet e beber?

No Brasil está regulamentado para uso ritualístico por uma resolução do  Conad (Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas), de 2010 que também recomenda que as universidades avancem com pesquisas para avaliar a possibilidade de um uso terapêutico, que ainda não existe formalmente, apesar de sabermos que muita gente faz uso terapêutico da ayahuasca. E, por incrível que pareça, sim, existem pessoas comprando na internet, embora não seja legalizado, e usando recreativamente em baladas, raves, nesse mundo tem louco para tudo, não sei como é possível, mas tem.

A ayahuasca pode ser uma alternativa de tratamento para transtornos mentais?

A resposta mais honesta é “depende’’. Se for um transtorno mais comum, como uma neurose, pode sim, porque o chá ajuda no autoconhecimento, na reorganização da pessoa como um todo. Porém, se o transtorno que a pessoa estiver passando for grave, antes da ayahuasca o mais recomendado é se tratar, até porque no caso de uma depressão, de ansiedade, medicamentos indicados são quimicamente compatíveis com o chá, não podem ser usados juntos, porque, no caso dos antidepressivos, pode haver uma síndrome serotoninérgica.

Mas, estudos já comprovaram a eficácia terapêutica para depressão, não faltam evidências, certo?

Há muitas pesquisas concluídas, em andamento e outras que ainda estão por vir, a serem feitas. Mas a literatura é bem vasta, não há a menor dúvida que a ayahuasca tem um comportamento farmacocinético muito semelhante aos antidepressivos, ou seja, com inibidor de recaptação de serotonina seletivos. Tipo, fluoxetina, escitalopram, esses medicamentos muito usados. Seus efeitos são quimicamente bem semelhantes com o chá. Tudo isso já é bem comprovado. E, em anos de utilização ritualística da ayahuasca, há muitos casos demonstrando o poder de cura que tem essa bebida juntamente com o ritual que a envolve.

Arquivo pessoal

 

Pessoas com problemas cardíacos devem evitar beber ayahuasca?

Não necessariamente. Uma cardiopatia, de maneira geral, não falando de casos específicos, não é necessariamente uma contraindicação para beber ayahuasca.

 

Há riscos no uso de rapé em sessões de ayahuasca?

Depende do tipo do rapé. O rapé normalmente é preparado com tabaco moído, torrado, é o que dá aquela picância no nariz, que provoca o espirro. E tem sempre uma substância mais psicoativa, ou a que dá o nome ao rapé, a planta usada. Cada substância tem um comportamento químico, não dá para dar uma resposta genérica. Mas, o que vale a pena chamar a atenção, é que isso está sendo usado indiscriminadamente, é rapé disso, rapé daquilo. E a pergunta é: qual é a necessidade disso? Se é uma medicina, qual é a indicação, qual é o propósito de usar o rapé? Especialmente dentro de uma sessão de ayahuasca que por si só já é uma experiência bastante forte e que não precisa de muito mais adereços.

Uma pessoa com algum tipo de instabilidade emocional pode beber ayahuasca?

Se uma pessoa está passando por um sofrimento psíquico agudo não deve beber ayahuasca, porque a experiência pode fazer emergir um tanto de material psíquico que possivelmente não irá contribuir para a estabilidade emocional da pessoa naquele momento. Isso tem de ser avaliado.

 

Está havendo descuido no acesso à ayahuasca? Como deve ser a entrevista de acolhimento e a preparação para que alguém consuma o chá?

Sim. Está havendo um crescimento indiscriminado, como era mais ou menos esperado que fosse acontecer, e esse crescimento exagerado, indiscriminado e multifacetado, nem sempre tem uma estrutura de acolhimento e os cuidados que se deve ter no caso de uma bebida tão potente como essa. Esse tem sido o problema, grupos que têm crescido, entrevistas mal feitas, pessoas bebendo sozinhas sem muita experiência, porque conseguem com alguma facilidade o chá e tendo experiências às vezes perigosas, este é um grande problema. Existem pessoas com interesse em reunir todos os usuários e criar federações. Já se tentou isso durante anos e todas as vezes não deu certo. Mas neste momento é necessário repensar essa questão, porque os grupos estão crescendo de maneira exponencial e a segurança com que os rituais estão sendo feitos, no meu ponto de vista, que sou um ayahuasqueiro raiz, da velha guarda, acho um tanto quanto preocupante. Caretices à parte, é só uma questão de preocupação, porque eu sei a importância do ritual no consumo de um enteógeno. O ritual é o que dá a direção para uma boa experiência.

 

Como lidar com situações de surto? Por que ocorrem?

O surto estava ali esperando uma oportunidade para eclodir, qualquer tempestade emocional poderia desencadear esse surto, um acidente de automóvel, uma falência, um rompimento afetivo, um divórcio, uma morte de um ente querido, qualquer coisa assim. Ou, uma sessão de ayahuasca, onde de repente um monte de material psíquico vem à tona. É aí que acontece o surto. E como lidar com essas situações? A primeira coisa a fazer é entrar em contato com a família, pedir o socorro dela, e interromper imediatamente o uso da ayahuasca. Para esses casos não é a hora certa. Toda medicina tem um porquê, uma causa, um momento, uma quantidade e um lugar. E no momento do surto é hora de interromper e procurar imediatamente um auxílio profissional. É essa a minha recomendação, e não tem muita conversa. Tem coisas que são emergências e outras que são urgências, surto é uma emergência, socorro imediato.

 

Quais os principais cuidados que se deve tomar ao buscar uma experiência com ayahuasca?

O fundamental é conhecer bem o grupo que está se propondo a te oferecer essa experiência. Conhecer bem significa saber se existe só interesse comercial, financeiro, se existem pessoas experientes ali dentro. Se existe um clima amoroso, de acolhimento, de irmandade ou se é uma coisa “oba oba, magia da floresta”, cuidado com isso. Em segundo lugar, procure grupos que têm uma tradição na estrutura ritualística que trabalha. Não importa se é União do Vegetal, Santo Daime, xamanismo. Mas um lugar que tenha uma estrutura e uma finalidade. E que essa finalidade esteja diretamente ligada à expansão da consciência e não a comércio ou curiosidade. E, se possível, vá livre de expectativas, porque pode acontecer tudo, inclusive nada. Como diz o ditado, mais vale criar galinhas do que expectativas. Se você puder, vá para essa experiência, como alguém que entrou num cinema para assistir um filme que nem sequer viu o título, disposto a assistir o que vier.

Carlos Minuano

Jornalista e escritor, há mais de duas décadas escreve sobre psicodélicos nos principais veículos jornalísticos do país, como nas revistas CartaCapital, Rolling Stone, jornal Metro. É colaborador do portal UOL desde 2012. Além de dirigir a Psicodelicamente, atualmente trabalha na pesquisa para um livro sobre psicodélicos, que será publicado pela editora Elefante. É autor de duas biografias, “Tons de Clô” (do estilista Clodovil Hernandes) em adaptação para uma série de streaming, e “Raul por trás das canções” (do músico Raul Seixas), ambas publicadas pelo grupo editorial Record.

Comentários

Respostas de 5

  1. Parabéns pelo trabalho desta entrevista. Também sou psiquiatra e tomo Santo Dai-me desde 82. Hoje dirijo o departamento de saúde mental da iceflu. Nunca tomei a bebida em outro lugar, senão em nossas igrejas. O colega da União está totalmente certo ,e respondeu com muita clareza sobre todos os pontos abordados na entrevista. Parabéns a todos envolvidos neste trabalho.

    1. Dr Carlos,eu sou fardado faz 27 anosy gostaria falar com voçe .Eu moro no Uruguay y sou fardado de Ceu de Luz.Como faco pra comunicarme com voçe.?obrigado,abrazo!!!

  2. Muito boa análise.
    Sou frequentador de um núcleo tradicional em Manaus e reforçamos todas as principais preocupações do Dr. Wilson Gonzaga.

  3. Uma observação: a bioquímica do ayauasca colocada pelo Wilson está equivocada.
    Primeiro, não é mecanismo farmacocinético.
    Segundo, não é inibição de recaptação de serotonina

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