“Hoje vamos ao monte conversar com as plantas”, recorda o xamã peruano Randy Chung Gonzales, ao relembrar um momento marcante da adolescência, vivido ao lado de um de seus primeiros mestres, Ruperto Sangama Cachique. “Naquele momento, eu pensei: mas como vamos conversar com as plantas, se elas não têm ouvidos, não têm boca?”, conta.
O relato foi feito na semana passada, durante o lançamento, em São Paulo, do livro “Iniciação pelos Espíritos – Tratando as doenças da modernidade pelo xamanismo, os psicodélicos e o poder do sagrado”, escrito por Frédérique Apffel-Marglin e Randy Gonzales. A obra foi publicada no Brasil pelo LIS (Lar e Integração do Ser), centro vegetalista fundado em 2024 localizado na região serrana do Rio de Janeiro e dedicado às práticas espirituais ritualísticas originárias do Alto Amazonas peruano.
Gonzales participou de uma roda de conversa na qual compartilhou sua experiência iniciática no xamanismo peruano, conhecido como práticas vegetalistas. Apesar do contato precoce com mestres espirituais, com a ayahuasca e com dietas de plantas mestras ao longo de muitos anos, ele conta que não imaginava estar sendo preparado para se tornar curandeiro. Foram necessários anos até compreender que, sim, é possível se comunicar com as plantas e estabelecer uma conexão com elas.
“Foi um processo muito difícil, muito intenso. Eu pensava que conversar com as plantas, ouvir as divindades ou os espíritos significava estar entrando num processo de loucura — até que comecei a compreender, a sentir essa conexão, e aceitei esse caminho de aprendizado com essas forças, para poder oferecer cura às pessoas que necessitam”, afirma Gonzales.
O livro “Iniciação pelos Espíritos” apresenta um testemunho profundo da trajetória do xamã peruano Randy Gonzales, que também é artista plástico. Seu caminho espiritual é fruto de uma intensa conexão com as tradições do vegetalismo amazônico.
Escrita em coautoria com a antropóloga Frédérique Apffel-Marglin, a obra também mergulha na relação entre o xamanismo, os psicodélicos e o tratamento das chamadas doenças da modernidade.
No Brasil, Gonzales é o responsável pela condução ritualística dos retiros realizados no LIS. O centro promove rituais ancestrais que tecem uma ponte entre os saberes milenares e os conhecimentos contemporâneos da medicina, da psicologia e da ciência.

O impacto do xamanismo na arte
Durante a conversa, o curandeiro peruano Randy Gonzales, que já se dedicava à pintura, contou como o xamanismo amazônico impactou sua arte. “Mudou drasticamente em 2016, depois que acompanhei a antropóloga Frédérique Apffel-Marglin a uma cerimônia de ayahuasca liderada por um xamã local”, relembra. Ao longo de sua trajetória como curandeiro, sua expressão artística ganhou um novo sentido.
“O que expresso no papel vem da experiência, da informação que adquiri nesses 25 anos – não apenas com a ayahuasca, mas com outras plantas, fazendo dietas. Existem visões espirituais que surgem na experiência. Somos receptores dessa informação que as plantas nos oferecem. Há cores, geometrias, divindades, espíritos, energias – um conjunto de elementos desse mundo espiritual. Isso foi o que me inspirou.”
Com traços vibrantes e visionários, suas pinturas refletem a jornada espiritual e a conexão com as “plantas professoras”, essenciais ao conhecimento do vegetalismo peruano. Durante o lançamento em São Paulo, o público pôde conferir algumas de suas obras. O livro é ricamente ilustrado com desenhos de sua autoria.

Dietas com plantas maestras no LIS
A roda de conversa contou com a participação da psicóloga Karla Perdigão — cofundadora, facilitadora ritualística e coordenadora do LIS —, do professor e pesquisador Alessandro Campolina, do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp-FMUSP) e médico da equipe de apoio do LIS, e foi mediada pelo jornalista Carlos Minuano, editor da revista Psicodelicamente. O bate-papo reuniu um público interessado no potencial das medicinas ancestrais para a promoção da saúde integral — do corpo, da mente e do espírito.
O debate também apresentou ao público os trabalhos realizados pelo LIS, com destaque para as dietas com plantas maestras, promovidas mensalmente no Rio de Janeiro. As jornadas desenvolvidas pelo centro são inspiradas em experiências consolidadas na América Latina, como a do centro Takiwasi, no Peru.
O LIS oferece práticas que unem a medicina indígena da Amazônia peruana à psicologia e à medicina ocidental, com foco principal nas dietas com plantas maestras. Os trabalhos contam com o acompanhamento de uma equipe multidisciplinar, composta por psicólogos, terapeutas e médico de apoio, que orientam cada participante antes, durante e após a dieta.
“O carro-chefe do trabalho são as dietas de nove dias, mas também há jornadas mais curtas, de três dias, para quem busca um primeiro contato com esses conhecimentos”, explica a psicóloga Karla Perdigão.
“O carro-chefe do trabalho são as dietas de nove dias, mas também há jornadas mais curtas, de três dias, para quem busca um primeiro contato com esses conhecimentos”, explica a psicóloga Karla Perdigão. A próxima dieta está prevista para abril, durante o maior feriado prolongado do Estado do Rio de Janeiro em 2025 — uma emenda de cinco dias que reúne as celebrações da Páscoa, de Tiradentes e de São Jorge. Mais detalhes sobre datas e modalidades dos trabalhos podem ser consultadas no site oficial do centro.
As dietas têm início com uma cerimônia de purga, na qual são utilizadas plantas maestras para promover a desintoxicação em níveis físico, energético e espiritual. Esse processo prepara o corpo para uma vivência mais profunda da dieta e também das cerimônias com ayahuasca.
No entanto, o consumo da bebida não é obrigatório — é possível vivenciar toda a experiência sem utilizá-la. Pessoas que não podem ou não desejam tomar ayahuasca recebem orientações para uma prática integrativa individual, como a respiração holotrópica.
As dietas são realizadas em Areal (RJ), em uma área de Mata Atlântica, e ocorrem em cabanas individuais, que oferecem um ambiente de acolhimento e introspecção, ao mesmo tempo em que mantêm proximidade com a infraestrutura urbana.

Ciência e espiritualidade
“As doenças tratadas pela ciência possuem uma dimensão espiritual, assim como as questões abordadas pela espiritualidade têm uma dimensão física”, afirma o médico Alessandro Campolina.
Segundo ele, ao atuar sobre o sofrimento humano, a ciência inevitavelmente toca em aspectos espirituais — e, por isso, precisa aprender a lidar também com essas dimensões. Da mesma forma, a espiritualidade, ao se debruçar sobre a dor e a experiência concreta das pessoas, também pode abordar questões físicas.
Campolina acredita que a verdadeira evolução no tratamento das doenças modernas só será possível a partir de uma aliança entre ciência e espiritualidade. Para ele, compreender de forma mais integral a experiência humana — simultaneamente material e espiritual — exige uma abordagem que una os saberes desses dois campos.
O livro “Iniciação pelos Espíritos” pode ser encomendado pelos contatos de WhatsApp ou e-mail disponíveis no site oficial do LIS: lis.org.br, onde também é possível encontrar mais informações sobre os trabalhos realizados pelo centro, incluindo datas e modalidades das dietas com plantas maestras.
*Colaborou Paula Nogueira