Com a medicina e a psicoterapia psicodélica visivelmente avançando no mundo, cresce o volume de pesquisas e esquenta a temperatura de discussões em torno dos tratamentos e protocolos. Ainda bem! Sinal de que estamos produzindo conhecimento e debatendo os temas relevantes.
No meio dessa efervescência surge uma pergunta: qual o papel e a necessidade da PAP (Psicoterapia Assistida por Psicodélicos)? A indagação gerou uma polêmica em janeiro deste ano. Tudo começou com um artigo intitulado “Must Psilocybin Always “Assist Psychotherapy?” (A psilocibina deve sempre “ajudar a psicoterapia”?, em português), de Goodwin, Malievskaia, Fonzo & Nemeroff, no American Journal of Psychiatry (publicado na versão online em julho de 2023).
O artigo resumidamente propõe que a PAP não captura o verdadeiro mecanismo de mudança facilitado pela experiência psicodélica e indica que os efeitos observados até agora nos estudos de tratamento psicodélico devem ser atribuídos à droga em si e não à psicoterapia.
“No caso da psilocibina, por exemplo, digamos simplesmente ‘tratamento com psilocibina’. Continuar a usar o termo ‘PAP’ nesta fase gera o risco de confundir e impedir o desenvolvimento de agonistas (que ativam ou estimulam receptores específicos), serotoninérgicos como medicamentos em doses psicodélicas. Podemos pensar mais claramente sem ela”, argumentam os autores do artigo polêmico.
A reação ao artigo gerou seis cartas ao editor e uma réplica dos autores iniciais, além de mais uma publicação, desta vez na revista científica Lancet, uma das mais importantes na área médica do mundo, endereçando a mesma polêmica: “Treatment with psychedelics is psychotherapy: beyond reductionism” (O tratamento com psicodélicos é psicoterapia: além do reducionismo), de Gerhard Gründer da Universidade de Heidelberg, na Alemanha, em coautoria com um grupo de pesquisadores alemães. É sobre este último artigo que quero falar hoje.
O artigo começa apontando que a terapia com psicodélicos foi conceituada como PAP, uma forma de psicoterapia que utiliza os efeitos biológicos desta classe de substâncias como um catalisador para mudar o pensamento, as emoções e o comportamento. Nesta visão, o componente psicoterapêutico do tratamento é considerado de extrema importância tanto para a segurança quanto para a eficácia da terapia.
Porém esta conceitualização tem sido desafiada pela ideia de que os estudos clínicos mais recentes sugerem que os potenciais efeitos terapêuticos dos psicodélicos devem ser atribuídos apenas à própria substância, sem qualquer papel para a psicoterapia. Nesta linha, o acompanhamento dos terapeutas é entendido como mero apoio psicológico, para manter a segurança da administração da substância e é até mesmo indesejado pelos potenciais riscos da interação entre paciente e terapeuta.
Segundo Gründer, pensar que o tratamento com psicodélicos é uma intervenção biológica (com apoio psicológico como um componente puramente relacionado à segurança) representa um dualismo desatualizado e reducionista que dominou o tratamento e a pesquisa psiquiátrica por muito tempo e que impede o progresso na pesquisa em terapia psiquiátrica.
Efeito da droga e dependência do contexto
Um dos principais argumentos defende que a dependência do contexto é particularmente evidente para tratamentos com drogas psicodélicas, pois alguns de seus efeitos psicológicos e neurobiológicos podem ser caracterizados como aumento da sensibilidade e adaptabilidade ao contexto.
Não há como isolar os efeitos das substâncias, assim como não há como isolar o paciente da própria vida, redes de relacionamentos e contexto social. Os autores lembram que a plasticidade neural, consequência clássica dos psicodélicos, é uma “faca de dois gumes”.
Estudos com camundongos tratados com fluoxetina para depressão, mas que foram deixados em ambientes estressantes, mostram aumento de sintomas depressivos se comparados com o grupo controle. Já os que foram colocados em condições enriquecidas, tiveram melhorias nos quadros depressivos.
Suporte psicológico e psicoterápico
Os autores do artigo publicado na Lancet pontuam que a separação entre o tratamento medicamentoso e suporte psicológico e psicoterápico é arbitrária e contradiz a realidade clínica em psiquiatria e psicoterapia, especialmente quando se trata de terapia com psicodélicos.
Em especial no caso dos psicodélicos, a participação terapêutica no processo se dá em três fases: preparo, sessão com substância e integração. Não se trata apenas de um contrato formal entre o terapeuta e o paciente que ajude o paciente a se auto-gerenciar dentro das sessões.
Pelo contrário, a sessão preparatória já se caracteriza como contendo os elementos básicos da psicoterapia. A construção de um sólido relacionamento, preparo para lidar com os desafios de uma sessão com substância, preparo emocional e investigação das condições e intenções do paciente, são importantes para o processo.
O trabalho ainda passa pelo apoio na sessão e é seguido pela integração que tem por objetivo principal refletir sobre a experiência e gerar insights. Isto passa longe de ser apenas um apoio para garantir a segurança do processo.
Da regulamentação à implementação
Gründer ressalta ainda que as instâncias que lidam com as avaliações das novas terapias e que por consequência embasam as decisões sobre se os custos da tecnologia ou o tratamento serão cobertos pelos seguros de saúde, têm decidido de forma bem mais integrada no que diz respeito à associação do tratamento psicoterápico e farmacológico.
O Instituto Nacional de Excelência em Saúde e Cuidados do Reino Unido, na Inglaterra, a Diretriz Nacional Alemã de Gerenciamento de Doenças sobre Depressão Unipolar, na Alemanha e a Associação Psiquiátrica Americana, nos EUA, recomendam a associação de terapia farmacológica e psicoterapia na maioria dos casos de depressão.
Estas recomendações são todas baseadas em evidências de numerosos estudos em que a terapia combinada é comprovadamente mais eficaz para a depressão. Portanto, sugere-se que as recomendações para a regulamentação do desenvolvimento de medicamentos devem evoluir em conformidade para o progresso da compreensão da natureza das doenças humanas e os fundamentos culturais e sociais deste entendimento, o que não combina com pressupor uma separação artificial entre o biológico e fatores de efeito contextual.
Conceitualizando o tratamento com MDMA
A experiência com as terapias de MDMA implica em maior tempo de contato entre paciente e terapeuta. Sem dúvida é mais adequado falar em uma psicoterapia assistida, se o que de fato ocorre é um processo psicoterápico em si mesmo sob o efeito de uma substância.
Estudo recente em ratos sugeriu que o MDMA e os psicodélicos clássicos, como LSD e psilocibina, compartilham os mesmos mecanismos neurobiológicos, reabrindo um período crítico para aprendizagem de recompensa social.
Mais uma vez o relacionamento com o contexto se destaca nesse tipo de tratamento. Ainda mais por falar de pessoas com histórico de trauma, sabe-se que o potencial terapêutico está na correção de padrões comportamentais disfuncionais, crenças ou esquemas.
E aqui sabe-se que a qualidade da relação terapêutica constitui o mais importante preditor de sucesso do tratamento. Portanto, para os autores “o acompanhamento das sessões por uma pessoa que não conhece um paciente e destina-se apenas a fornecer cuidados de suporte para sua segurança potencialmente colocam em risco o processo terapêutico.”
Para os autores do artigo, declarar que os efeitos de uma terapia são puramente devido à própria droga, negando a importância da incorporação psicoterapêutica não a torna uma terapia biológica, nem mais segura.
Gründer e o grupo de autores concluem que limitar a avaliação dos efeitos clínicos de psicodélicos apenas aos efeitos da substância não só compromete a segurança dos pacientes, mas também ignora a evidência crescente sobre os mecanismos de mudança nas terapias psicodélicas e subestima o valor terapêutico potencial destas substâncias poderosas.
Pela velocidade dos avanços no campo psicodélico, sabemos e torcemos pelo crescimento desse entre outros vários debates. Porém, é inegável, quando consideramos principalmente o potencial mercadológico dos psicodélicos, que há muitos interesses e vieses.
Na minha perspectiva, e já declarando o meu background de psicóloga que pode ser determinante para o meu próprio viés, é impensável achar que o ser humano pode ser tratado apenas sob a perspectiva biológica.
Paul Bloom, o renomado psicólogo de Yale, em seu mais recente livro “Psych: The Story of Human Mind” (“A história da Mente Humana”, ainda não publicado no Brasil) – e fica aqui esta recomendação de leitura – abre o debate do que é a psicologia exatamente desconstruindo o dualismo mente e corpo, mostrando que este debate já foi superado pela ciência moderna.
Também acho que não precisamos deste retrocesso. Dizer que é uma coisa ou outra, para mim não faz sentido. A ciência psicodélica não existe sem as substâncias psicodélicas. Qual a lógica em dizer que ela faz sentido sem dialogarmos com os conteúdos produzidos pela mente quando sob o efeito das substâncias? Talvez faça sentido se o único interesse for vender remédio! E isso a sociedade contemporânea já sabe fazer, mas veja onde chegamos…