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Cantos da ayahuasca inspiram pinturas em exposição no Masp

Mostra “Mahku: Mirações” reúne 102 trabalhos de artistas Huni Kuin que buscam traduzir mitos e a ancestralidade dos rituais de nixi pae

Carlos Minuano, para a Psicodelicamente

Foto: Reprodução/Mahku (Movimento dos Artistas Huni Kuin)

“O ensinamento da pintura não começa pelo desenho, primeiro ensinamos a música”, conta à Psicodelicamente o indígena Ibã Huni Kuin (Isaías Sales). Segundo ele, quem aponta os caminhos – e o traço – são os cantos do nixi pae, bebida psicoativa amazônica mais conhecida como ayahuasca.

Ibã é fundador do coletivo Mahku (Movimento dos Artistas Huni Kuin), da aldeia Chico Curumim, no Alto Rio Jordão, no Acre, na fronteira com o Peru. “Eu sou professor e pesquisador do espírito da floresta”, diz ele sobre o trabalho que desenvolve com sua comunidade.

Um recorte expressivo dessas obras inspiradas pelos cantos e visões da ayahuasca está em exposição no Masp (Museu de Arte de São Paulo. A mostra “Mahku: Mirações” reúne 102 trabalhos do coletivo de artistas Huni Kuin que buscam traduzir mitos e a ancestralidade dos rituais de nixi pae. 

A exposição apresenta esculturas, pinturas e desenhos em papel e tela (três delas produzidas para a mostra), além de áudios com cantos e um documentário. Outro destaque é uma pintura gigante nas laterais da rampa que interliga o primeiro ao segundo subsolo do museu. 

Segundo o Masp, faz parte da tradição do coletivo indígena realizar uma intervenção artística nos espaços expositivos que ocupam, criando uma conexão física e espacial entre mundos. 

A exposição em um dos museus mais icônicos do país marca a consolidação do trabalho do coletivo Huni Kuin na arte contemporânea. O Mahku foi criado em 2013, mas sua história começou alguns anos antes. Os artistas participaram de cursos de licenciatura indígena na UFC (Universidade Federal do Acre), onde realizaram a primeira mostra do grupo em 2011.

No ano seguinte, o coletivo participou de outra mostra, desta vez na Fondation Cartier, em Paris, com um desenho ilustrando a capa do catálogo. Desde então, o trabalho do coletivo, carregado de histórias e mitos, vem conquistando cada vez mais espaço dentro do universo das exposições de arte. 

Aliás, não é a primeira vez que o coletivo ocupa os espaços do Masp. Desde 2016, os artistas indígenas já participaram de três exposições e uma oficina. A mostra “Mahku: Mirações” (que segue até 4/6) abre uma programação dedicada à temática indígena que se estenderá durante todo o ano. 

Pintura nas laterais da rampa que interliga o primeiro ao segundo subsolo do museu. Foto: Isabella Matheus

Mitologia Huni Kuin

As pesquisas do coletivo de artistas Huni Kuin iniciadas na UFC e na terra indígena do Alto Jordão no Acre, em 2009, ganharam o nome “Espírito da Floresta”. O processo enveredou por três linguagens: a música dos cantos tradicionais, o desenho elaborado como tradução visual desses cânticos e o audiovisual, que fez a ponte entre ambos. 

Dois filmes registram as etapas do processo, “O Espírito da Floresta”, que foi apresentado em 2012 na Fondation Cartier, em Paris, e “O sonho do nixi pae”, de 2015.    

O objetivo do grupo é estudar e ensinar os mitos, explica o antropólogo e curador assistente do Masp, Guilherme Giufrida. “Fazer as histórias do povo sobreviverem, se estenderem e se transformarem, preservando a integridade e o enraizamento.”

A mitologia da ayahuasca tem um lugar central na exposição do Masp. Por exemplo, na tela “Inu Yube Shanu” que aborda o mito do surgimento da bebida sagrada nixi pae. Na pintura, e na cosmologia xamânica de um modo geral, a jiboia é uma figura central, que simboliza a transformação. 

O mito Huni Kuin narra o encontro de Yube Inu (homem indígena), com Yube Shanu (mulher-jibóia). Junto com ela, e com o povo jiboia, ele participa de um ritual, bebe o nixi pae, e após as mirações, se torna um xamã, aprende a fazer a bebida e entra em contato com as músicas da serpente.

A lenda diz que por desentendimentos com o sogro, com ciúmes do conhecimento que ele obteve, Yube Inu é mordido e acaba adoecendo, mas, antes de morrer, retorna ao seu povo e ensina o preparo do nixi pae. 

Nixi pae na língua Huni Kuin significa “cipó forte” ou “fio encantado”. Considerada uma bebida sagrada, ocupa um lugar central na vida desse povo indígena. Toda a comunidade participa dos rituais, desde crianças de 6 anos até adultos e idosos. 

E “miração” (palavra usada no título da exposição do Masp) é o nome dado às visões durante os rituais de ayahuasca (o termo também é usado pelos grupos religiosos que usam a bebida, como Santo Daime e UDV (União do Vegetal).

A ayahuasca é preparada com folhas de um arbusto chamado chacrona (Psychotria viridis) e um cipó conhecido como jagube ou mariri (Banisteriopsis caapi), duas plantas amazônicas. A beberagem é usada há milhares de anos por dezenas de povos indígenas na Amazônia, entre eles o povo Huni Kuin, no Acre, e há décadas por cultos religiosos brasileiros.

Pintura do artista peruano Limbert Gonzales, aluno de Pablo Amaringo/ Reprodução

‘Ayahuasca visions’

Pinturas inspiradas nas mirações da ayahuasca não são exclusividade do povo Huni Kuin. No Peru, há décadas, gerações de artistas indígenas e mestiços representam visões de experiências com a bebida. Um dos artistas mais famosos é o peruano Pablo Amaringo (1938 – 2009). 

Amaringo – que também foi curandeiro durante alguns anos – ficou conhecido mundialmente após encontro em Pucallpa com o etnobotânico Dennis McKenna e o antropólogo Luis Eduardo Luna, com quem lançou o livro “Ayahuasca Visions: The Religious Iconography of a Peruvian Shaman” (North Atlantic Books) em 1999, sem edição no Brasil.

Nas cidades amazônicas do Peru, como Tarapoto, Pucallpa e Iquitos, escolas, galerias e comunidades indígenas mantêm viva a tradição da arte visionária, que também pode ser vista em muros e nos muitos artesanatos e souvenirs vendidos nas ruas e em lojas.      

A exposição no Masp, que segue até junho, além das obras do coletivo Mahku de artistas Huni Kuin, tem ainda uma mostra individual de pinturas da indígena macuxi Carmézia Emiliano.

Serviço:

MAHKU: MIRAÇÕES (E CARMÉZIA EMILIANO)

Quando: “Mahku: Mirações” até 4 de junho; “Carmézia Emiliano” até 11 de junho; ter., das 10h às 20h; qua. a dom, das 10h às 18h

Onde: Masp – av. Paulista, 1578, São Paulo

Preço: R$ 60; grátis às terças

Carlos Minuano

Jornalista e escritor, há mais de duas décadas escreve sobre psicodélicos nos principais veículos jornalísticos do país, como nas revistas CartaCapital, Rolling Stone, jornal Metro. É colaborador do portal UOL desde 2012. Além de dirigir a Psicodelicamente, atualmente trabalha na pesquisa para um livro sobre psicodélicos, que será publicado pela editora Elefante. É autor de duas biografias, “Tons de Clô” (do estilista Clodovil Hernandes) em adaptação para uma série de streaming, e “Raul por trás das canções” (do músico Raul Seixas), ambas publicadas pelo grupo editorial Record.

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