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Uso ritual de cogumelos mágicos cresce no Brasil

Instituto alerta que falta de amparo legal expõe usuários a riscos e resulta em prisões arbitrárias de cultivadores

Instituto Micélio Sagrado, especial para a Psicodelicamente*

Foto: Pixabay

O uso dos ‘cogumelos mágicos’, ou psilocibinos (Psilocybe cubensis), que contêm psilocibina — um composto enteógeno com propriedades terapêuticas e uma longa história de uso tradicional, especialmente entre povos indígenas do México — tem ganhado destaque no Brasil, principalmente em contextos rituais e práticas voltadas ao desenvolvimento pessoal, bem-estar e à saúde mental.

Embora a psilocibina esteja ligada a diversos benefícios — desde experiências espirituais transformadoras até o alívio de sintomas como depressão e ansiedade —, especialistas alertam que a falta de regulamentação no Brasil aumenta os riscos para os usuários, tanto em relação à segurança quanto ao uso inadequado da substância.

Sem um marco regulatório que oriente o uso adequado desses cogumelos no Brasil, consumidores, fungicultores e dirigentes de rituais enfrentam inseguranças e preconceitos constantes. A associação do uso e cultivo a comportamentos ilícitos frequentemente resulta em perseguições policiais e dificulta debates públicos que poderiam esclarecer os benefícios e os riscos à população.

Essa preocupação é central para os pesquisadores do IMS (Instituto Micélio Sagrado), que, entre outras atividades, se dedica à investigação ancestral, espiritual, científica e antropológica dos cogumelos psilocibinos, buscando ampliar a compreensão sobre seus usos e impactos na sociedade.

Com o avanço mundial das pesquisas, estima-se que o número de brasileiros que recorrem aos cogumelos mágicos como alternativa terapêutica e espiritual esteja crescendo ano após ano. Uma busca rápida no Google pelo termo “comprar cogumelos mágicos” revela cerca de 7.630 resultados, com empresas que ofertam o produto. Muitas delas são registradas com CNPJs e emitem nota fiscal. Algumas operam regularmente no mercado desde os anos 1990.

No entanto, esse crescimento ocorre em um contexto distinto de países como a Austrália e de alguns estados americanos, como Oregon, que, além de garantir proteção constitucional às organizações religiosas e seus usos rituais com cogumelos psilocibinos, promovem debates e regulamentam o uso da psilocibina em tratamentos terapêuticos. Essas iniciativas visam proteger tanto os usuários quanto os cultivadores, permitindo discussões sobre o uso em ambientes seguros e controlados.

Na opinião do jurista Daniel Rodrigues, conselheiro e pesquisador jurídico do IMS, a regulamentação adequada do uso ritual e medicinal desses fungos — considerando a crise generalizada na saúde mental e o dever de garantir a igualdade no exercício da liberdade espiritual — promoveria avanços significativos na promoção de práticas seguras de bem-estar da população.

“Isso evitaria a incriminação equivocada da fungicultura brasileira e das comunidades que utilizam esses fungos com fins sagrados, assegurando respeito e amparo a toda forma de fé. Dessa forma, seguiríamos as tendências globais, valorizando o cuidado emocional e respeitando a liberdade constitucional de consciência, crença, culto e liturgias”, afirma Rodrigues.

No Ocidente, há cerca de 10 organizações reconhecidas que fazem uso ritual de fungos psilocibinos/Foto: IMS (Divulgação)

Insegurança jurídica

No Ocidente, existem pelo menos 10 organizações oficiais reconhecidas que fazem uso sacramentado de fungos psilocibinos, de forma semelhante ao uso da ayahuasca (bebida enteógena de origem indígena, preparada a partir de plantas amazônicas e utilizada em rituais religiosos e terapêuticos). Entre elas estão: Church of Psilomethoxin (EUA), Sacred Mushroom Church of Switzerland (Suíça), Neo-American Church (EUA), Oratory of Mystical Sacraments (Canadá), Church of the People for Creator’s (EUA), Mazatec Church (México), Temple of the True Inner Light (EUA), Missionary Church of the Mind (EUA), Psychedelic Society (Reino Unido e Internacional) e a Sacred Garden Community (Havaí).

No Brasil, embora a Constituição Federal, no artigo 5º, inciso VI, garanta a liberdade de consciência, crença e culto, a ausência de regulamentação cria estigmas e mantém os dirigentes de rituais de cogumelos mágicos acuados, vivendo em uma zona de insegurança jurídica, aponta o pesquisador. “São pessoas pacíficas, dedicadas à evolução espiritual, que querem apenas trilhar um caminho sagrado, mas se sentem estigmatizadas e temem incômodos com a justiça”, defende Rodrigues.

Segundo o pesquisador do IMS, no campo social, essa lacuna alimenta um ciclo nefasto de automedicação desorientada e intervenções policiais injustificadas, dificultando a orientação pública adequada sobre o tema. O resultado tem sido repressão abusiva e a prisão arbitrária de dezenas de fungicultores, que permanecem desamparados legalmente.

Para o pesquisador jurídico, a situação nacional dos cogumelos enteógenos é contraditória, especialmente considerando a validação legal de outras práticas espirituais enteógenas de natureza semelhante, como o uso ritual da ayahuasca, regulamentado no Brasil desde 2010 por meio de uma resolução do Conad (Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas). “É incompreensível essa brutal diferenciação interpretativa, pois ambas as substâncias apresentam segurança farmacológica, são utilizadas de forma ancestral e não possuem grau significativo de toxicidade. Além disso, pertencem à mesma classe de compostos (triptaminas) e possuem moléculas quase idênticas.”

O jurista argumenta que, embora não haja proibição legal e existam decisões judiciais que confirmem isso, algumas instâncias policiais ainda insistem em interpretar o cultivo e a venda do fungo psilocibino como tráfico de drogas. “Confunde-se a proibição da molécula isolada, classificada como droga de uso proibido, com o corpo do fungo, que nunca foi explicitamente proibido.”

Rodrigues destaca que há manifestações do MPF (Ministério Público Federal), do MP-SP (Ministério Público do Estado de São Paulo), da Polícia Federal, de algumas justiças estaduais e até um parecer do Instituto de Criminalística sobre o tema, todas apontando a inexistência de crime na venda desses fungos. 

Em um artigo jurídico publicado recentemente, escrito em coautoria com os advogados Demóstenes Torres e Caio Alcântara Martins, o pesquisador do IMS analisou profundamente o tema, destacando a atipicidade dos cogumelos mágicos. “Mesmo assim, ainda há prisões arbitrárias de fungicultores”, lamenta Rodrigues.

Por outro lado, o jurista esclarece que, sob a ótica do livre mercado, na ausência de regulamentação comercial ou proibição da venda, o direito do fungicultor encontra respaldo no princípio constitucional da livre iniciativa (artigo 170 da Constituição) e na Lei de Liberdade Econômica (artigo 3º, inciso V, da Lei n.º 13.874/2019). Ele destaca que, considerando que o corpo frutífero desse fungo não foi proibido pela Lei de Drogas, o fungicultor tem o direito de atuar no mercado com presunção de boa-fé e livre de abuso regulatório, salvo se houver expressa proibição legal.

“Em uma verdadeira democracia, o Estado deve criar as leis, aplicá-las e também cumpri-las, sem interpretá-las de forma a prejudicar o cidadão, inventando crimes e regras inexistentes”, afirma Rodrigues. “Não se pode confundir ausência de regulação com violação de lei.”

Na compreensão do jurista, para que a venda ou o cultivo sejam considerados crimes, os psilocibinos precisariam constar explicitamente na lista de fungos ilegais, tal como ocorre com o fungo Claviceps, que pode ser utilizado na produção da droga LSD. “O mesmo vale para as proibições comerciais”, observa.

Ele cita a RDC 26/2014 da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), que administrativamente proibiu a manipulação e encapsulação do cogumelo mágico por farmácias de manipulação. “Mas até hoje, o cultivo e a venda, de modo geral, não foram regulamentados nem proibidos. O que não está proibido, presume-se permitido. Esta é uma premissa básica do direito público.”

A substância apresenta perfil farmacológico seguro quando utilizada adequadamente, diz estudo do IMS/Foto: Pixabay

Risco à saúde?

Evidências científicas recentes apontam as propriedades terapêuticas da psilocibina presente nos cogumelos psilocibinos. Mas por que a política de drogas vigente no Brasil ainda classifica essa substância como perigosa e de alto potencial de abuso? Para responder a essa questão, que sugere um grave equívoco na classificação, o núcleo científico do IMS realizou uma pesquisa inédita, investigando se os cogumelos mágicos representam riscos à saúde pública brasileira em comparação com outras substâncias.

Publicado recentemente no International Journal of Medicinal Mushrooms, o estudo analisou dados de uma série histórica do Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação), abrangendo eventos adversos relacionados ao abuso de drogas entre 2007 e 2022, totalizando 112.451 casos examinados.

Os resultados revelaram que a maioria dos incidentes envolveu homens (79.514; 70,7%), pessoas brancas (37.565; 33,4%) e indivíduos entre 26 e 35 anos (29.163; 25,9%). As substâncias mais frequentemente associadas aos abusos foram o álcool (71.824; 49,2%), seguido pela cocaína (29.171; 20%) e medicamentos, principalmente anticonvulsivantes (14.794; 10,1%).

O estudo destacou que os cogumelos psilocibinos foram associados a um número extremamente baixo de eventos adversos, com apenas 13 casos registrados ao longo de 15 anos. Todos os casos envolveram homens, sendo a maioria na faixa etária de 18 a 25 anos (8; 61,5%).

Em relação às hospitalizações, o álcool liderou com 13.418 internações (45,0%). Para os cogumelos mágicos, a taxa de hospitalização foi de 46,2% (6 de 13 casos), representando apenas 0,02% de todas as internações, sem relatos de sequelas ou mortes. Já as mortes relacionadas ao abuso de drogas foram, em sua maioria, associadas ao uso de cocaína (33,3%).

“Diante de um estatuto jurídico ambíguo e da omissão regulatória, que geram incertezas e criam barreiras ao acesso seguro à psilocibina, o estudo ressalta a urgência de discutir as implicações legais dessa substância”, afirma Nogueira, que é um dos autores da pesquisa. “Em um estado verdadeiramente democrático, as violações dos direitos constitucionais devem ser enfrentadas com informação transparente e pela implementação de mecanismos eficazes de proteção e reparação.”

Para o pesquisador do IMS, é contraditório que a Anvisa classifique como droga perigosa, com potencial de causar dependência, uma substância utilizada de forma segura em pesquisas científicas no campo da saúde mental e, há milênios, em contextos cerimoniais. Aliás, não há casos de pessoas viciadas em psilocibina”, afirma Nogueira.

Foto da curandeira mazateca, Maria Sabina em reportagem da revista americana Life /Foto: Allan Richardson (1957)

Remédio da alma

O uso ritual dos cogumelos sagrados segue uma lógica semelhante à da ayahuasca, mas com um histórico ainda mais antigo, embora menos documentado. Nesse contexto, é sabido que seu uso espiritual na Mesoamérica foi severamente reprimido pela religião colonizadora dominante, o que talvez explique por que seus usos são tão pouco conhecidos atualmente.

A lógica opressiva parece se repetir ainda hoje, refletida no estigma e na repressão social aos usos e cultivos desses fungos ancestrais. Essa realidade leva as comunidades espiritualistas a realizarem seus sacramentos de forma discreta e receosa. Provavelmente, essa é uma das razões para a ausência de uma tradição ritual sólida em nosso país, aponta Rodrigues, do IMS. “Este fungo também é considerado por nós e por muitos povos como uma medicina tradicional sagrada, com fins semelhantes aos da ayahuasca”, pondera.

Os rituais com cogumelos enteógenos têm uma longa tradição em várias culturas indígenas do México, incluindo os Mazatecas e outros povos originários. “Há registros de comunidades antigas e contemporâneas que utilizam esses fungos em cerimônias de autocura emocional e conexão com o divino. No Brasil, há décadas, temos relatos de inúmeras comunidades que também fazem o mesmo uso”, afirma Rodrigues.

“Aliás, olhando para o Oriente, no hinduísmo, ao examinarmos a história do Soma — bebida enteogênica mencionada nas escrituras védicas (Rig Veda), utilizada por sábios videntes, monges ascetas e meditadores tântricos —, observamos algo interessante: embora as pesquisas não esclareçam essa questão, estou convencido de que a bebida dos yogis era composta pelos cogumelos Psilocybe cubensis e outras harmalas”, afirma o pesquisador do IMS.

Rodrigues relata que os praticantes utilizavam a mistura e meditavam em silêncio por longos períodos. “Era assim recebiam seus conhecimentos sagrados. Eles ainda hoje usam em ritos específicos”, acrescenta. “Ao contrário do que se diz, nessa cultura não foi utilizado o cogumelo Amanita muscaria”, destaca o pesquisador do IMS. No entanto, ele aponta que essa hipótese não pode ser confirmada pela literatura disponível, mas somente por ensinamentos passados de “boca-ouvido” por mestres indianos das tradições ortodoxas.

Não estamos tratando de um mero fungo, mas de uma medicina xamânica, ampliadora da consciência, que marcou a história oculta de diversos povos ao redor do mundo e continua sendo utilizada, apesar de rejeitada por muitas sociedades modernas, afirma Rodrigues. “Trata-se de um patrimônio histórico, cultural e genético da humanidade, que permeia os segredos e práticas de inúmeras tradições espirituais, místicas e filosóficas do planeta, servindo como um instrumento de investigação da alma humana na busca pelas respostas mais fundamentais da existência”.

Essas culturas veem os cogumelos como “remédio da alma”, aliados e veículos de conexão divina, capazes de revelar verdades ocultas da inconsciência, liberar traumas e promover equilíbrio interior. Um nome de destaque nesse contexto é o da curandeira Maria Sabina, xamã de origem Mazateca, cuja sabedoria sobre os cogumelos tornou-se mundialmente reconhecida após realizar uma cerimônia para o banqueiro e micologista amador Robert Gordon Wasson, e posteriormente para o cientista Albert Hofmann, criador do LSD.

Wasson escreveu uma longa reportagem sobre sua experiência com os cogumelos mágicos na revista Life. A divulgação despertou o interesse global e trouxe consequências negativas para essas comunidades, incluindo a invasão de seus territórios, a exploração comercial dos cogumelos e a descontextualização de seus usos espirituais.

Esse histórico serve de alerta, para que o debate regulatório no Brasil, envolvendo psicodélicos, leve em conta a proteção e o respeito às raízes culturais e espirituais dessas práticas, destaca o pesquisador do Instituto.

Cena do filme ‘Os psicodélicos podem curar?”/Reprodução

Experiência mais branda

Os cogumelos mágicos ganharam destaque no Brasil após as inúmeras evidências clínicas sugerirem a segurança e eficácia terapêutica dessas substâncias, confirmando o que sempre se soube no contexto ritual, observa Rodrigues. “Isso parece ter contribuído significativamente, nas últimas décadas, para que vertentes espiritualistas alternativas brasileiras começassem a incorporar esse enteógeno em seus ritos.”

Segundo o pesquisador do IMS, usuários relatam que uma das razões pelas quais os cogumelos psilocibinos vêm ganhando muitos adeptos, incluindo membros das tradições ayahuasqueiras, é o fato de que a experiência com o cogumelo, por vezes, se apresenta mais branda e delicada do que a da ayahuasca, raramente ocasionando vômitos e outros processos de limpeza física.

Além disso, a bebida ayahuasca exige práticas ritualísticas e processos específicos para sua produção, acrescenta Rodrigues. “No caso dos psilocibinos, a natureza os entrega prontos, seus alcaloides já combinam todos os componentes suficientes e necessários para  a jornada espiritual.”

O pesquisador do IMS menciona inúmeros depoimentos de pessoas que, ao relatarem suas experiências, afirmam passar por uma ressignificação de traumas e por uma revisão profunda e amorosa de suas dores. “Percebo que encontram novas perspectivas, novos sentidos para suas dores e retomam a alegria de viver, e o melhor: com mudanças definitivas.”

Ferramenta ancestral de cura

Embora haja relatos esparsos do uso de cogumelos psilocibinos por alguns indígenas brasileiros, não há dados comprovando o uso tradicional. No entanto, para os pesquisadores do IMS, seu uso como ferramenta ancestral de cura, ainda que em outros contextos, reforça a importância de abordar essas substâncias de maneira cuidadosa e ética, a fim de evitar o risco de apropriação cultural, reconhecendo-se o valor dos saberes ancestrais.

De acordo com o presidente do IMS, Marcel Nogueira, a inclusão de lideranças indígenas no debate regulatório brasileiro, caso haja interesse por parte deles, é imprescindível.  “São vozes indispensáveis que possuem amplo conhecimento sobre o uso de enteógenos, e podem garantir que os direitos das comunidades originárias sejam assegurados, preservando-se os conhecimentos dos povos.”

Para Nogueira, os princípios éticos sugeridos pelo instituto não buscam criar uma estrutura doutrinária em torno dos cogumelos psilocibinos ou promover um circuito de “neoveladas”, como ocorreu, por exemplo, no caso do uso ritual da ayahuasca, com a expansão de grupos neoxamânicos após a regulamentação em 2010 (a cerimônia com cogumelos mágicos entre o povo Mazateca é chamada de “velada”). “A intenção é que o uso desses cogumelos seja conduzido sempre de forma segura e respeitosa, com respaldo legal.”

“Incorporar essas perspectivas não apenas honra a diversidade cultural e espiritual das práticas psicodélicas, mas também ajuda a construir políticas públicas mais justas e representativas, salienta o pesquisador do IMS, Rodrigues.

“A regulamentação desses campos seria uma oportunidade para eliminarmos equívocos, aprendermos com os múltiplos usos e tradições, e promovermos um diálogo inclusivo, que valorize tanto a ciência e o cultivo quanto a sabedoria ancestral, incluindo as múltiplas formas contemporâneas de manifestação de consciência, crença e fé; não com base na repressão do estado, mas em nome da liberdade pessoal e da pluralidade religiosa.”

 

*Os artigos publicados na Psicodelicamente são de responsabilidade de seus autores e não refletem necessariamente a opinião da revista.

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