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Psicodélicos para falar com mortos

Reconexão com entes queridos através de ayahuasca, psilocibina e ibogaína e mistérios que estão além da ciência

Paula Nogueira, para a Psicodelicamente

Foto: Freepik

Substâncias como ayahuasca, cogumelos mágicos e ibogaína têm ganhado popularidade, impulsionadas por pesquisas que comprovam seu potencial terapêutico. No entanto, muitas pessoas buscam essas experiências pelo que elas oferecem além da ciência. Para esses psiconautas, a experiência psicodélica é uma porta para outra dimensão, uma oportunidade de reconexão com o invisível, um meio de comunicação com outros planos de existência e, em alguns casos, com entes queridos que já partiram.

Embora essa conexão com o plano espiritual não tenha comprovação científica, há relatos vívidos de pessoas que descrevem essas experiências como sendo tão reais quanto um abraço em vida. A reportagem da Psicodelicamente conversou com médicos especialistas em psicodélicos para entender melhor esses encontros espirituais com entes queridos durante experiências com ayahuasca, psilocibina ou ibogaína.

Por exemplo, o espaço para compartilhar insights após o ritual da ayahuasca é quase tão sagrado quanto o próprio momento da cerimônia. É comum que os participantes troquem relatos sobre experiências, desafios, alegrias e, em alguns casos, encontros com parentes falecidos.

‘Ayahuasca traz o que você precisa’ 

“Quando alguém vem com a intenção de encontrar um parente falecido, a primeira coisa que digo é: pare com isso. Não é o que você quer, mas o que você precisa que a ayahuasca irá trazer”, afirma Wilson Gonzaga, médico psiquiatra que durante muitos anos conduziu rituais de ayahuasca. A bebida amazônica é usada por povos indígenas e em religiões como o Santo Daime e UDV (União do Vegetal).

“Pode ser que nada aconteça, como na maioria das vezes, especialmente quando alguém deseja intensamente um reencontro. Se esse tipo de experiência surgir inesperadamente, é preciso simplesmente aceitar”, declara Gonzaga.

O especialista explica que, embora o desejo de reencontrar um ente querido seja comum, a experiência com a ayahuasca segue seu próprio curso, independentemente das expectativas de quem a consome. A bebida amazônica não segue a lógica dos desejos humanos. Segundo o médico, o chá acessa aquilo que a pessoa precisa vivenciar para seu próprio processo de autoconhecimento e cura.

No entanto, para muitos, a experiência com a ayahuasca vai além do autoconhecimento, proporcionando encontros emocionais profundos com aqueles que já partiram. “Já vi pessoas lidarem com questões mal resolvidas com o pai ou a mãe após o falecimento deles. A ayahuasca ajuda no processo de perdão e compreensão”, afirma o médico.

As visões podem ser um fenômeno espiritual ou algo semelhante a uma experiência onírica, como nos sonhos. Em qualquer caso, sempre há algo a ser integrado dessas experiências. “Por isso, é importante a presença de pequenos núcleos e de dirigentes, ou de alguém que possa auxiliar na integração da experiência”, enfatiza o psiquiatra.

Psilocibina no resgate de memórias

Na opinião do médico Wilson Gonzaga, a psilocibina, princípio ativo dos cogumelos mágicos, oferece uma direção mais definida para experiências introspectivas, permitindo ao participante explorar temas específicos, como memórias ou traumas.

“A psilocibina é mais fácil de conduzir do que a ayahuasca”, afirma Gonzaga. Na interpretação do médico, embora a experiência com a ayahuasca e os cogumelos mágicos compartilhe o potencial de cura e autoconhecimento, a psilocibina parece oferecer um caminho mais direto para o coração das questões pessoais, ampliando as possibilidades de transformação e resolução de antigas feridas.

Com a psilocibina, existe uma possibilidade concreta de preparar a pessoa para revisitar a raiz do problema, e não é raro que ela resolva questões profundas, observa Gonzaga. “Tanto a ayahuasca quanto os cogumelos mágicos promovem cura, mas acredito que, com a psilocibina, esse processo seja mais comum e acessível.”

A psilocibina é uma escolha valiosa para quem busca um mergulho mais direcionado em si mesmo, permitindo que memórias e traumas antigos venham à tona de maneira clara e direta.

Colocando o ego para dormir

Qual é o papel dos psicodélicos na ativação de memórias no cérebro? Segundo Wilson Gonzaga, é derrubar a rede neural padrão enquanto ativa de forma magnífica a neuroplasticidade, “colocando o ego para dormir” e abrindo novas possibilidades de percepção.

“Psicodélicos fazem uma ponte entre o mundo tridimensional e o mundo multidimensional”, explica o médico. Nesse estado, a pessoa pode entrar em um plano espiritual e, eventualmente, se encontrar com um ente querido.

Quanto à possibilidade de essas experiências serem meras reconstruções de memória ou algo além, Gonzaga afirma que essa é uma questão antiga e ainda sem resposta definitiva.

“Aqueles que acreditam em um mundo espiritual creem que estão entrando em contato com ele. Os agnósticos, que ainda não tiveram uma epifania, acreditam que se trata de uma memória construída”, explica Gonzaga. Ele compara essa dúvida com as indagações sobre alucinações: “O cérebro está construindo imagens, ou são visões com algum sentido?”

Cerimônia de iboga na África em cena do documentário “Ibogaine – Rite of Passage”/Reprodução

Ibogaína: portal para o mundo dos mortos

Existe uma antiga crença de que a iboga, planta de uso ancestral africano, atua como um portal para o mundo dos mortos, permitindo o contato com os espíritos de pessoas que já partiram. Curiosamente, algo semelhante ocorre com a ibogaína, substância extraída da raiz da planta e usada no tratamento de casos graves de dependência química.

“Os efeitos farmacológicos da ibogaína não explicam esse tipo de experiência”, afirma o médico e pesquisador Bruno Rasmussen, que trabalha há 30 anos com a substância para tratar pacientes com problemas de dependência química. “É algo muito mais místico e religioso do que científico. Mas é interessante notar os numerosos relatos de pacientes sobre terem tido contato com familiares falecidos e pessoas conhecidas.”

A iboga é uma planta nativa das florestas tropicais da África Central, conhecida por suas propriedades alucinógenas e sua ação no sistema nervoso central. Tradicionalmente, é utilizada em rituais religiosos e de cura pela etnia Bwiti, especialmente no Gabão.

No caso da ibogaína, o médico explica que ela também pode ajudar as pessoas a lidar com a perda de um ente querido, pois facilita a recordação de momentos do passado e a revisitação de situações traumáticas, permitindo ressignificar essas experiências com uma nova compreensão. “Isso é muito positivo para a terapia e traz um efeito bastante benéfico para a saúde mental da pessoa.”

Quanto às experiências espirituais e aos encontros com entes queridos, Rasmussen observa que essas vivências continuam a desafiar a compreensão dos pesquisadores. “Elas revelam uma dimensão espiritual que muitos acreditam estar profundamente conectada ao processo de cura.”

Segundo ele, embora ainda não se saiba por que esse encontro com os mortos acontece, acredita-se que, no futuro, os psicodélicos também poderão ajudar na compreensão da morte, especialmente em situações de luto e em outras que exijam uma mudança na arquitetura cerebral, aponta o pesquisador.

“À medida que se estude e compreenda mais, os psicodélicos terão um papel mais definido no tratamento de traumas ligados ao luto e à perda”, finaliza Rasmussen.

No Brasil, a ibogaína, embora não possua registro nos órgãos reguladores, pode ser utilizada na prática médica com base na autonomia do profissional de saúde e importada com autorização da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para o tratamento de dependência química. 

*Com edição de Carlos Minuano

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